Folha de S.Paulo

China capitaliza vácuo aberto por Trump

Aversão de presidente americano por fóruns globais e deficit de credibilid­ade ampliam influência de líder chinês

- PATRÍCIA CAMPOS MELLO

Congresso do Partido Comunista enfatiza ambição global de potência asiática; analistas veem risco

Ao longo das três horas e 23 minutos de discurso na abertura do Congresso do Partido Comunista da China, nesta semana, Xi Jinping, dirigente máximo do regime, descreveu a China como “grande potência” 26 vezes. Previu que, em 2050, o país “se tornará potência global líder” e “terá posição de destaque entre as nações”.

Ficaram para trás os tempos em que a ditadura chinesa pregava a modéstia e seguia a máxima do líder Deng Xiaoping (1904-97): “Esconda sua força e espere pacienteme­nte pela oportunida­de”.

A China perdeu os pudores e vem preenchend­o o vácuo de liderança mundial deixado pelo presidente americano, Donald Trump, alérgico a concertaçõ­es multilater­ais.

Enquanto Trump defende os “EUA em primeiro lugar” e rasga acordos comerciais como a Parceria Transpacíf­ico e o Acordo de Paris sobre o clima, a China reforça seu financiame­nto a instituiçõ­es como a ONU e seu compromiss­o com a mitigação do aqueciment­o global. Chineses assumiram postos de liderança no Banco Mundial, na Interpol e em outras organizaçõ­es. Os EUA anunciaram que vão sair da Unesco, o braço da ONU para patrimônio histórico e cultural.

Em artigo no “Wall Street Journal” em maio, integrante­s do gabinete de Trump diziam que “o mundo não é uma ‘comunidade global’, mas uma arena onde nações, ONGs e empresas se relacionam e disputam vantagens”.

Já o dirigente da maior ditadura

DAVID KELLY

consultor da China Policy do mundo roda o globo pregando “comunidade­s com futuro compartilh­ado com a humanidade” e criticando o isolacioni­smo de Trump —“nenhum país pode se recolher à sua própria ilha, vivemos em um mundo compartilh­ado e encaramos um destino compartilh­ado”.

O projeto de Xi é oferecer a “solução chinesa”, expressão lançada em julho do ano passado, para o mundo. “O Partido Comunista da China e o povo chinês têm confiança em poderem oferecer uma solução chinesa para a busca da humanidade por instituiçõ­es sociais melhores”, disse Xi no aniversári­o do partido.

No Fórum Econômico Mundial em Davos, em janeiro deste ano, Xi foi mais assertivo. Apresentan­do-se como defensor do livre comércio, disse que a China deveria “guiar a globalizaç­ão econômica”. No mês seguinte, em Pequim, subiu a aposta afirmando que o país deveria “guiar a sociedade internacio­nal” para “uma ordem mundial mais justa e racional.” PODER DO DINHEIRO Para ganhar influência, os chineses apostam na arma que já vêm usando há algum tempo, o financiame­nto. Eles criaram o Banco de Investimen­to em Infraestru­tura da Ásia e do Novo Banco de Desenvolvi­mento (ou Banco dos Brics). A iniciativa da Nova Rota da Seda (também chamada de “Belt and Road Initiative”) prevê mais de US$ 100 bilhões para bancos de desenvolvi­mento na China financiare­m pontes, estradas, portos e projetos energético­s em mais de 60 países.

Mas Xi sabe que não basta comprar aliados. Para ganhar peso mundial, a China precisa assumir o papel de fornecedor mundial dos chamados bens públicos como educação, saúde e iniciativa­s de combate à pobreza, diz David Kelly, diretor de pesquisa da consultori­a China Policy.

Não que se espere uma liderança nos moldes ocidentais. “Xi não está preparado para fazer nada que envolva promoção de democracia no mundo ou respeito a direitos humanos do ponto de vista ocidental”, diz Kelly.

“A ‘solução chinesa’ não envolve exportação desses valores, sua liderança global se dará por meio da promoção do desenvolvi­mento, incluindo saúde e educação, e não Estado de direito.”

A disseminaç­ão da “solução chinesa” também difere bastante da máxima americana de que a democracia é a resposta para tudo e todos.

“Não há modelo único que se aplique a todas as nações; não acreditamo­s que o que é certo para nós é certo para os demais”, disse Chen Peijie, a cônsul-geral da China, em evento nesta semana na Fundação FHC (São Paulo).

Tampouco deve-se esperar que a China dê apoio a ONGs e à sociedade civil. Segundo Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacio­nais da Fundação Getúlio Vargas, a China quer estabilida­de. Nunca tem diálogo com a oposição em lugar nenhum e não tolera o contraditó­rio.

Que o digam países como Coreia do Sul e África do Sul,

OLIVER STUENKEL

professor de relações internacio­nais da Fundação Getúlio Vargas que, com medo de Pequim, negaram visto ao dalai-lama.

Para os analistas, conforme a China assumir de forma mais aberta posição de liderança, problemas surgirão.

Um dos princípios da política externa chinesa é a não intervençã­o. O governo chinês faz negócios com o ditador do Zimbábue, Robert Mugabe (1987-), sem impor condições de respeito a direitos humanos. Negocia com iranianos e sauditas, com palestinos e israelense­s.

“O desafio é se surgir uma guerra civil, e você for o ator global decisivo, como se posicionar. Não se pode ficar sempre a favor da situação, sempre apoiar regimes, quaisquer que sejam”, diz Stuenkel.

Ian Bremmer, presidente da consultori­a Eurasia Group, concorda com o declínio da liderança global dos EUA.

“A possibilid­ade de se dizer não aos EUA está crescendo. Os EUA mandaram a Rússia sair da Crimeia, o Bashar al Assad [ditador sírio] renunciar, e o que houve? Nada.”

Mas ele aposta em um cenário internacio­nal mais fragmentad­o. Não foi à toa, diz, que Xi previu seu país líder só em 2050. “Ele sabe que a China ainda não está pronta para ser superpotên­cia.”

Xi não está preparado para fazer nada que envolva promoção de democracia no mundo ou respeito a direitos humanos no ponto de vista ocidental. A ‘solução chinesa’ não envolve exportação desses valores “é se surgir uma guerra civil, e você for o ator global decisivo, como se posicionar. Não se pode ficar sempre a favor da situação, sempre apoiar regimes, quaisquer que sejam

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AFP - 18.out.17 Estudantes balançam bandeiras ao acompanhar a fala de Xi Jinping na abertura do Congresso do Partido Comunista Chinês, em Huaibei

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