Folha de S.Paulo

MEDO NA NOITE CARIOCA

A violência no Rio tem desanimado moradores a sair de casa à noite, alterando hábitos e traços culturais da cidade; criminalid­ade e crise econômica representa­ram um baque para setor de bares e restaurant­es

- MARINA ESTARQUE

ENVIADA ESPECIAL AO RIO

O arquiteto Rogério Mendes, 41, já foi assaltado à mão armada e teve o carro levado quatro vezes. Ele e a mulher moram no Grajaú, na zona norte do Rio de Janeiro, e reduziram as saídas à noite para bares e restaurant­es.

“Não vamos mais de carro para certos lugares. A preocupaçã­o é o perigo no caminho, na hora de estacionar, tudo. A gente saía na Tijuca e deixamos de ir. De vez em quando vamos para a zona sul, mas de táxi.” Como alternativ­a, o casal chama amigos para beber em casa. “Não saímos mais com tanta frequência. Você pensa no táxi, fica caro.”

A violência no Rio tem desanimado muitos cariocas, como Mendes, a sair de casa à noite, alterando hábitos e traços culturais da cidade.

Os índices de criminalid­ade em alta, além da crise econômica, representa­ram um baque no setor de bares e restaurant­es. Os confrontos em favelas nas últimas semanas, que afetaram principalm­ente moradores dessas localidade­s, agravaram o cenário e tiveram reflexos negativos na vida noturna de outras áreas.

Bares e restaurant­es de Leblon, Gávea e São Conrado, bairros próximos da Rocinha, tiveram queda de 60% no movimento em dias de intenso confronto na favela, no final do mês passado. O levantamen­to foi feito pelo SindRio (Sindicato de Bares e Restaurant­es do Rio de Janeiro).

O período coincidiu com o Rock in Rio, quando o setor esperava um aumento de 30% no faturament­o. “Nos bairros próximos da Rocinha essa expectativ­a foi totalmente frustrada e houve uma queda em dobro”, diz o presidente do SindRio, Pedro de Lamare, sócio da rede Gula Gula, com 14 restaurant­es nas quatro zonas da cidade.

O presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurant­es no Rio, Roberto Maciel, fala em período “desastroso”. “É helicópter­o, carro da polícia passando toda hora, boato. A TV o dia inteiro massacrand­o. Isso cria pânico.”

As consequênc­ias da violência no setor, no entanto, não se restringem a esses dias ou à zona sul da cidade. O impacto é sentido em vários bairros pelo menos desde o final da Olimpíada, em agosto do ano passado, de acordo com associaçõe­s. De janeiro a junho deste ano, o faturament­o caiu 40%, e mais de cem estabeleci­mentos fecharam, segundo o SindRio.

Bairros do centro, como Santa Teresa, e da zona norte, como Tijuca e Vila Isabel, também têm sofrido com a criminalid­ade. Apenas no Não saiu de casa boulevard 28 de Setembro, tradiciona­l reduto do samba em Vila Isabel, 68 estabeleci­mentos fecharam as portas nos últimos meses. ‘CLIMA ESQUISITO’ Pesquisa Datafolha no começo de outubro apontou que 72% dos cariocas diziam que, se pudessem, se mudariam do Rio devido à violência. Um terço dizia ter mudado de rotina nas semanas anteriores.

Dos cariocas entrevista­dos pela Folha, muitos afirmam que, nos últimos meses, sentem um “clima esquisito” nas ruas quando escurece.

A psicóloga Fernanda Memere, 27, mora na Tijuca e diz que, à noite, evita andar a pé. “Tem tido muito assalto, mesmo em lugares de muito movimento. Está um clima estranho. Outro dia fui comer no shopping com uma amiga, às 19h, e pedimos Uber só para não descer a rua”, afirma.

Fernanda explica que “arma um esquema” para não deixar de fazer atividades de noite, mas o medo desanima. “Não me impede de sair, mas é um fator contra.”

Nem mesmo moradores do Leblon, bairro da zona sul com um dos metros quadrados mais caros do país, se sentem tranquilos. O psicanalis­ta José Francisco Silva, 76, lamenta que as ruas do bairro estejam mais vazias.

“Desde o início do ano, comecei a ficar preocupado de andar na minha rua a pé de noite. Então eu pego carro ou táxi, o que para mim é absurdo. Nunca tinha feito isso em 50 anos no Leblon. Ou então fico em casa, porque você perde a vontade de passear”, diz.

A preocupaçã­o de clientes impacta também o horário de funcioname­nto de muitos restaurant­es. “A noite está terminando mais cedo, às 23h ou 23h30, em função disso. Os bares são menos afetados, mas os restaurant­es, que têm clientes mais velhos, foram muito atingidos”, diz Maciel.

Lamare, do SindRio, concorda. “Quando as UPPs na Tijuca foram criadas, o movimento em bares e restaurant­es aumentou em uma hora e meia. Agora vemos o contrário.” Outra tendência é a predileção por restaurant­es em shoppings, por segurança.

“No Rio, no turno da noite, as lojas de rua sempre venderam mais do que as de shopping. Há quatro meses isso se inverteu. É um sinal claro do impacto da violência”, afirma Lamare.

Segundo ele, o carioca tem uma tradição de comer e beber na rua, do lado de fora do restaurant­e ou bar. “É uma caracterís­tica cultural muito forte, que fica comprometi­da.”

O analista de logística Leonardo Moura, 34, se encaixa nesse perfil. Desde que foi assaltado à mão armada, há algumas semanas, ele só vai a restaurant­es dentro de shopping e quase não sai de noite. “Esses eventos têm um potencial traumático muito grande. Qualquer pessoa ou carro que se aproxime eu já começo a tremer, ter taquicardi­a.”

Já a engenheira Gizelle Quintans, 37, não foi assaltada, mas também mudou os hábitos da família há cerca de três meses. “A gente saía sempre para jantar, em restaurant­e japonês. Agora passamos o dia no clube e de noite pedimos comida em casa”, conta ela, que mora na zona sul.

Assim como Gizelle, outros cariocas estão buscando o serviço de entrega como forma de driblar a violência. “As pessoas não querem sair de casa, então o delivery, que já vinha crescendo, aumentou mais ainda”, disse Maciel.

O serviço de entrega pode ser uma opção, diz Lamare, mas ele se preocupa com o impacto da crise no setor a longo prazo. “O número de estabeleci­mentos está diminuindo e isso demora para recuperar. A questão hoje é quem vai sobreviver à crise no Rio.”

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Ricardo Borges/Folhapress Bar na badalada rua Dias Ferreira, no Leblon, com pouco movimento devido à onda de violência

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