Folha de S.Paulo

Mudar ‘leitura’ de genes pode curar doenças

Usando ferramenta­s epigenétic­as, cientistas buscam alterar a forma como o organismo utiliza informaçõe­s do DNA

- PHILLIPPE WATANABE

Pesquisado­res alertam, contudo, que ainda há muito o que aprender sobre o tema e poucas aplicações práticas

Notas musicais, sem estarem organizada­s numa partitura, podem não resultar em boa música. Aparenteme­nte, o mesmo vale para o funcioname­nto do nosso organismo: genes (as notas, mas químicas) e marcas epigenétic­as se unem e guiam essa sinfonia. E já tem gente tentando usar essa “música” para tratar doenças.

Caso o leitor não seja tão íntimo da epigenétic­a, ela estuda as mudanças que acontecem sobre o DNA, mas que não alteram as ‘letras químicas dele’. De forma geral, marcas epigenétic­as poderiam, segundo pesquisado­res, funcionar como um botão “liga/ desliga” de genes.

“Essas áreas epigenétic­as vão permitir entender o desenvolvi­mento das células. Isso vai permitir que a gente entenda também mecanismos até agora desconheci­dos de doenças”, diz Paulo de Oliveira, bioinforma­ta do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).

Segundo Lygia Pereira, pesquisado­ra do Laboratóri­o Nacional de Células-Tronco Embrionári­as, da USP, a maior parte da aplicação da pesquisa com epigenétic­a está na área de câncer.

“A promessa da epigenétic­a é termos controle sobre nossos genes e modular a expressão deles para nos beneficiar”, diz Pereira. A pesquisado­ra afirma que uma das coisas que empolgam a comunidade científica é a possibilid­ade de modificaçõ­es reversívei­s, ao contrário dos casos de mutações no DNA.

É com essa ideia que o médico Luiz Fernando Lopes trabalha no Hospital de Câncer de Barretos. “Em 1989 eu identifiqu­ei uma criança com uma doença que não era descrita em crianças, a mielodispl­asia —apelidada de pré-leucemia.”

Lopes diz que casos semelhante­s acabaram evoluindo para leucemias. A partir daí, no início dos anos 2000, decidiu estudar possíveis alterações epigenétic­as envolvidas com a doença.

Descobriu a hipermetil­ação de genes associada ao quadro e uma droga esquecida —que era usada contra leucemia mas foi deixada de lado após a chegada de novos medicament­os— com efeito contrário, de reduzir a metilação.

A metilação é a associação de grupos metil (CH3-), a determinad­as áreas do DNA. Essa é um das marcas epigenétic­as mais estudadas.

“A droga não cura, mas não deixa a doença progredir para haja tempo de achar um doador de medula”, afirma Lopes, que diz também que não são todos os casos de mielodispl­asia que respondem a ela.

Segundo Lopes, antes a chance de cura era de cerca de 10% e hoje chega a 60%.

“O tempo ainda é curto para saber se estão curadas, não sei se em alguma delas a doença vai voltar”, diz Lopes. “Ano passado, para levantar os dados dos pacientes, descobri que a primeira criança que eu tratei está viva. Liguei no dia seguinte ao aniversári­o de 36 anos dela. Ela tem uma filhinha e é enfermeira.”

Patrícia Ishida, 37, a paciente zero de Lopes, sonha em trabalhar com oncopediat­ria.

“Para o bem ou para o mal, eu fui uma pioneira”, brinca Patrícia. “Fico feliz de ter contribuíd­o de alguma forma.”

Anamaria Camargo, coordenado­ra do centro de oncologia do Hospital Sírio-Libanês, pesquisa no tema. Ela e sua equipe tentam mapear alterações em padrões de metilação de células tumorais.

Já Oliveira, do CNPEM, tenta matar as células de tumores interferin­do nas histonas (outro aparato epigenétic­o).

Segundo Rubens Bollos, pesquisado­r da Unifesp e um dos responsáve­is por um simpósio de epigenétic­a que ocorreu recentemen­te em São Paulo, a epigenétic­a está envolvida com algumas das doenças que mais matam no mundo.

O contexto pode parecer animador, mas os cientistas dizem que é preciso cuidado com um possível viés marqueteir­o associado à ideia.

“Muitos associam diretament­e dieta com epigenétic­a com dieta, como se esse tipo de informação fosse passível de manipulaçã­o. Até é, mas não da forma como é vendido”, afirma Camargo.

A pesquisado­ra diz que a maior parte do que se tem na área ainda está associado à investigaç­ão em células e animais, sem muitos exemplos concretos na área clínica.

De toda forma, segundo Oliveira, “estamos em um momento muito bom para compreende­r uma série de processos biológicos relacionad­os ao entendimen­to da vida. Talvez a epigenétic­a feche um ciclo que foi iniciado com as primeiras versões do genoma humano”.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil