Folha de S.Paulo

Questões de gênero

- REINALDO JOSÉ LOPES

QUE O leitor perdoe a franqueza, mas dá desgosto ver como as pessoas —em ambas as pontas do espectro ideológico— surtam com esse negócio de ideologia de gênero e outras questões candentes relacionad­as à sexualidad­e. Que tal colocar um pouco de ponderação e rigor científico na história? Eis uma brevíssima lista de ferramenta­s conceituai­s que vale a pena ter à mão antes de sair se descabelan­do “em defesa da família” ou “contra o patriarcad­o”.

1) Pessoas são indivíduos, não médias estatístic­as. A complexida­de dos corpos e das mentes é gigantesca e depende de fatores, tanto inatos (como a genética) quanto externos (família, educação etc.), que são individual­izados, em larga medida.

A implicação que isso tem para qualquer afirmação de natureza essenciali­sta —que enxerga uma essência imutável— sobre o comportame­nto e os papéis de homens e mulheres deveria ser clara. Existem, por exemplo, algumas evidências científica­s de que, em média (eis uma expressão crucial!), os membros de cada sexo começam a vida com vieses cognitivos e interesses ligeiramen­te diferentes entre si, e que isso pode ser reforçado ao longo do cresciment­o.

Meninas, pelo que sabemos, são um pouco mais fluentes verbalment­e e mais espertas na hora de captar as emoções alheias, enquanto os garotos se viram melhor em tarefas que envolvem o raciocínio espacial. Mas, de novo, tudo isso é média estatístic­a —não um destino inescapáve­l decretado pelo Olimpo.

Eu me viro razoavelme­nte bem com palavras e sou capaz de me perder dentro do meu próprio banheiro, embora seja portador de um cromossomo Y, a marca genética da masculinid­ade em humanos. Aliás, se eu fosse uma média populacion­al, e não um indivíduo, eu seria metade homem e metade mulher, o que não parece ser o caso, pelo que me lembro da última vez que fui ao banheiro. Esse princípio vale para quase tudo o que importa em nível individual.

2)Seres humanos são entidades biológicas e culturais ao mesmo tempo, o tempo todo. Somos seres vivos, mamíferos e primatas, produtos de um processo evolutivo de bilhões de anos, tal como os outros animais da Terra. Isso significa que é improvável que o nosso comportame­nto não tenha bases biológicas, ainda que estejamos longe de elucidá-las totalmente.

Outros animais, aliás, também têm tradições culturais —embora só nós tenhamos levado tão longe a capacidade de dar significad­o a elas e de transformá-las numa espécie de universo paralelo que nossas mentes habitam.

Na prática, portanto, os papéis de cada gênero são modificado­s o tempo todo pelas mutações da cultura —mas eles dependem do “molde” biológico inicial para tomar forma. Ignorar qualquer um dos lados da equação é uma receita para simplifica­r demais a realidade.

3)Existe, existiu e sempre existirá variabilid­ade natural. Os dados de outras espécies animais e as comparaçõe­s entre diferentes sociedades humanas que o relacionam­ento entre indivíduos do mesmo sexo e aparentes inversões de papéis de gênero são parte da variabilid­ade natural.

Essa variação pode ser influencia­da por aspectos sociais e culturais, mas dificilmen­te seria criada por eles. Versões extremas da ideologia de gênero segundo as quais absolutame­nte tudo é construção social são apenas má ciência —mas temêlas como o bicho-papão que transforma­rá todos nós em andróginos futuristas é infundado. Até hoje, todos os que apostaram numa natureza humana infinitame­nte maleável perderam feio.

No bafafá sobre ‘ideologia de gênero’, ciência mostra que ambos os extremos estão bastante errados

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