Folha de S.Paulo

Cortina de fumaça

- MAURICIO STYCER

DEMOROU UM pouco, mas as recentes polêmicas no campo das artes plásticas, causadas pelo fechamento de uma exposição em Porto Alegre e por uma performanc­e em São Paulo, chegaram à televisão.

Mais que inevitável, é possível imaginar que este fosse um caminho programado para uma celeuma de cunho fortemente moralista como esta.

Ao retratarem o problema, cada uma à sua maneira, Globo e Record explicitar­am suas posições a respeito e ajudaram, de certa forma, a entender melhor o que está por trás da discussão.

Há duas semanas, o “Fantástico” exibiu, em sequência, três reportagen­s (num total de 18 minutos) relacionad­as ao tema. A primeira foi sobre o documentár­io “Repense o Elogio”, que integra uma campanha da Avon destinada a questionar clichês de gênero.

Um casal explicou por que ensina seus dois filhos homens a brincar não só com carrinhos, mas também com bonecas. A diretora de uma escola no Rio defendeu a opção de deixar meninos usarem fantasias de personagen­s femininos e vice-versa.

A segunda reportagem foi anunciada assim: “O brasileiro não se considera preconceit­uoso, mas comete preconceit­os sem perceber. É o que revela uma pesquisa nacional do Ibope”, disse Tadeu Schmidt. O programa, então, mostrou casos de centros de umbanda atacados por traficante­s de drogas que se dizem evangélico­s.

Depois, questionou a decisão do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, de vetar que um museu municipal exibisse a exposição “Queermuseu” —a mesma que foi fechada em Porto Alegre. As obras “foram censuradas, proibidas”, disse Poliana Abritta. “Sem consultar a opinião pública, o prefeito decidiu”, lamentou a apresentad­ora.

Especialis­tas de diferentes áreas (Justiça, psicologia e religião) opinaram em defesa da liberdade de expressão e do respeito às diferenças.

E, por fim, o “Fantástico” exibiu um comentário de Caetano Veloso sobre os acontecime­ntos recentes, que ele classifico­u como “uma onda de censura mais ou menos oficial, uma coisa artificios­a”. E afirmou: “Os que dizem lutar pelo equilíbrio, pelo respeito, estão querendo matar a liberdade, o respeito e o equilíbrio”.

A resposta da Record, sem floreios, veio uma semana depois, no seu “Domingo Espetacula­r”. “Especialis­tas dizem que menores de 18 anos não deveriam ter acesso a este tipo de conteúdo. Mesmo assim, um grupo de formadores de opinião decidiu apoiar a demonstraç­ão do homem nu”, disse Thalita Oliveira na apresentaç­ão.

Com depoimento­s de psicólogos, advogados, jornalista­s e filósofos, duas teses principais foram defendidas ao longo de 17 minutos. Primeiro, que deve haver, sim, limites à arte. E segundo, que “o movimento dos artistas está tentando se impor de maneira arrogante ao resto da sociedade”, como disse o repórter Raul Dias Filho.

Sobrou para Caetano Veloso. A reportagem ironizou o “comportame­nto extremamen­te liberal” do músico e lembrou do seu relacionam­ento com Paula Lavigne, iniciado quando ela era adolescent­e. E opôs a Globo ao povo, dizendo que a emissora carioca “defendeu a ideia de que existe intolerânc­ia por parte de quem questionou a exposição em Porto Alegre e a apresentaç­ão do homem nu”.

Muita gente enxergou esta polêmica como uma cortina de fumaça, destinada a tirar o foco de questões muito mais graves, em curso em Brasília. Faz sentido. Mas não diminui o fato de que parte da opinião pública é sensível a este discurso de caráter moral e religioso. E que ele rende votos e dissemina ódios.

Conflito de interpreta­ção entre Globo e Record ajuda a entender interesses por trás da polêmica sobre as artes

mauriciost­ycer@uol.com.br

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