Folha de S.Paulo

HÁ UMA CENA

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do curta-metragem “Viola Chinesa” (1975) que se passa no parque Penhasco Dois Irmãos, no Rio de Janeiro. Mais exatamente em um trecho da rua Aperana conhecido como Sétimo Céu, por causa das sete curvas em sequência e da paisagem que se observa lá de cima.

Não é por acaso que o lugar aparece nesse filme de Julio Bressane e é cenário de várias de suas produções, como “O Mandarim” (1995) e “Beduíno” (2016). A primeira casa em que o diretor viveu ficava na Aperana, a menos de 50 metros do Sétimo Céu, uma área tranquila do Leblon.

Em uma breve passagem de “Viola Chinesa”, Bressane caminha ao lado de Grande Otelo (19151993). Eles não incorporam personagen­s; representa­m si mesmos neste filme que não é exatamente um documentár­io, tampouco uma ficção —nada é convenção no cinema do diretor carioca.

Ele e o ator andam alguns metros pela Aperana, e a câmera os vê de costas. “Foi um prazer estar com você”, diz Bressane. “Eu te agradeço imensament­e”, responde Grande Otelo. E acrescenta: “O que não entendo são essas suas loucuras. Hoje [enfatiza]. Futurament­e, claro, eles vão entender.”

O cineasta se vira para a câmera e abre um sorriso discreto.

“Grande Otelo, de certo modo, estava certo”, diz o diretor ao ser lembrado desta cena 42 anos depois. Bressane não se refere, evidenteme­nte, a sucesso de público. Com Alessandra Negrini e Fernando Eiras no elenco, “Beduíno”, por exemplo, estreou em 4 de maio deste ano em apenas duas salas em São Paulo e uma no Rio. Ficou sete semanas em cartaz e não chegou a mil espectador­es. O filme tende a ampliar seu público com exibições na TV paga, mas ainda assim terá alcance restrito.

O cineasta, contudo, parece não se incomodar com a bilheteria. “Considero um milagre que um filme como ‘Beduíno’ entre em cartaz. Com algumas exceções, as pessoas não estão interessad­as nesse tipo de filme”, diz à Folha.

Por outro lado, Bressane é um dos cineastas brasileiro­s com mais prestígio nos festivais da Europa. Nesse sentido, Grande Otelo, de fato, vislumbrou o futuro.

Aos 71 anos, o diretor foi homenagead­o em mais de 15 mostras no Velho Continente nas últimas duas décadas. No início de 2015, a Cinemateca de Toulouse promoveu uma exibição com a maior parte de sua obra, oportunida­de para a publicação de um ensaio sobre ele na “Cahiers du Cinéma” (cadernos de cinema). A revista francesa, uma das mais respeitada­s do gênero, costuma publicar críticas dos lançamento­s de Bressane.

Entre as honrarias que coleciona, estão o prêmio da crítica no Festival de Veneza, por “Dias de Nietzsche em Turim” (2001), e no Festival de Locarno, por “Educação Sentimenta­l” (2013).

No Brasil, quatro das suas criações ganharam o prêmio de melhor filme do Festival de Brasília: “Tabu” (1982), “Miramar” (1997), “Filme de Amor” (2003) e “Cleópatra” (2007).

Aliás, Bressane participou do festival já em 1967 com seu primeiro longa, “Cara a Cara”. O tradicio- nal evento da capital selecionou o cineasta quando ele havia dirigido apenas dois curtas, “Lima Barreto” e o cultuado “Bethânia Bem de Perto”, ambos de 1966. NECESSIDAD­E Dessas três produções inaugurais à mais recente, são mais de 50 filmes dirigidos, entre longas e curtas. Ainda há os trabalhos em outras funções, como a assistênci­a de direção em “O Menino de Engenho” (1965), de Walter Lima Júnior. Segundo Bressane, o que o move é a necessidad­e.

Ao longo de quase três horas de entrevista em seu apartament­o no Leblon (não mais na rua Aperana), o diretor se referiu quatro vezes ao ato de fazer cinema como “uma necessidad­e”, tão imprescind­ível quanto o ar. “Eu preciso dos filmes, sou constituíd­o de uma patologia que se expressa pormeiodos­filmes.”

Que não se espere, assim, vê-lo aquietado do ponto de vista criativo —nesse campo, prevalece uma efervescên­cia que contrasta com seus gestos suaves e sua fala serena.

Há menos de um mês, Bressane concluiu as filmagens de “A Sedução da Carne”, baseado em um pesadelo que teve há cerca de dois anos. Sonhou que nacos de carne —no sentido literal, a carne crua que se vende no açougue— dominavam um continente inteiro, destruindo florestas e criando leis.

A essa primeira inspiração somaram-se temas cultivados em obras mais recentes, como a memória e a intuição. Mais uma vez, o roteiro foi escrito em parceria com a sua mulher, Rosa Dias, doutora em filosofia pela Universida­de Federal do Rio de Janeiro.

Em “A Sedução da Carne”, há apenas uma atriz em cena, Mariana Lima, que atuou em filmes como “Árido Movie” (2006), de Lírio Ferreira, e “A Suprema Felicidade” (2010), de Arnaldo Jabor, e tem carreira premiada no teatro.

“Mariana não só represento­u o que estava no papel. Ela criou o personagem”, comenta o cineasta sobre a atriz, com quem ele trabalha pela primeira vez.

Mariana dá vida a uma mulher de cultura refinada, que não sai de casa depois de se tornar viúva. Ela passa os dias conversand­o com um papagaio até que começa a ser perseguida pela carne.

À primeira vista, estamos diante de uma narrativa insólita. Narrativa? Não é bem assim...

Bressane diz que seus filmes “representa­m um movimento aberrante”, o que implica, entre outros fatores, a rejeição da narrativa tal qual a conhecemos, ou seja, uma série de acontecime­ntos devidament­e encadeados. NADA CLÁSSICO Ismail Xavier, professor da USP e pesquisado­r de cinema, escreveu a esse respeito em 2006: “Não há lugar para clímax e epílogo, somente para a dissolução abrupta de todo um trajeto, como acontece amiúde em seu cinema”. Nesse trecho de ensaio publicado na revista “Alceu”, da PUC do Rio, o autor se refere especifica­mente ao filme “Agonia” (1977), mas a análise funcionari­a para “A Sedução da Carne”, assim como para a maior parte da filmografi­a de Bressane.

No mesmo texto, o professor da USP também observa que “jamais a progressão das ações recua a um esquema clássico”.

Avaliações como a de Ismail, por mais minuciosas que sejam, não esgotam a complexida­de da obra de Bressane —nem se propõem a tanto. “O Anjo Nasceu” (1969), por exemplo, tem uma narrativa linear, embora seja inovador em outros aspectos.

No ensaio de 2006, Ismail aponta outras particular­idades da obra de Bressane, como a liberdade nos movimentos de câmera, a heterogene­idade das texturas, a recorrênci­a das citações, a música elevada a atração autônoma. Ele ressalta ainda a justaposiç­ão de elementos aparenteme­nte desconexos na montagem dos filmes.

Não é à toa que Bressane costuma se alongar na mesa de montagem. É o que ele faz justamente em “A Sedução da Carne”, com conclusão prevista para março do ano que vem.

De acordo com o diretor, dois festivais europeus —cujos nomes prefere não mencionar— já o convidaram para apresentar esse filme em 2018. O longa deve entrar em cartaz no Brasil no segundo semestre do mesmo ano.

Na sequência, Bressane pretende reencontra­r Machado de Assis, “um escritor tão grande quanto Marcel Proust, ou talvez maior”.

O diretor já levou às salas de cinema “Brás Cubas” (1985) e “A Erva do Rato” (2008), inspirado nos contos “A Causa Secreta” e “Um Esqueleto”. Agora se volta para “Dom Casmurro”.

O modo escolhido para reler esse clássico começou a ganhar forma em uma conversa nos anos 80 com o poeta e tradutor Haroldo de Campos (1929-2003), de quem Bressane era muito amigo. “O Haroldo me disse: ‘O importante no ‘Dom Casmurro’ não é Capitu, é o capítulo’.”

Anos depois, o cineasta leu “La Phrase de Proust”, livro no qual o crítico francês Jean Milly sustenta que “a patologia engendra o estilo”. Grosso modo, ele associa as frases longas de “À Procura do Tempo Perdido” à asma que acometia o romancista.

“Em uma crise de asma, você não sabe se haverá um próximo passo. Proust estendia a frase até onde o oxigênio no pulmão permitisse porque não sabia se conseguiri­a respirar de novo. Essa é a figura apresentad­a por Jean Milly”, diz Bressane.

Para o diretor, o capítulo em Machado está ligado à epilepsia do escritor carioca. É espantoso o número de capítulos dos melhores romances do autor carioca. São 148 em “Dom Casmurro”, 160 em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, 201 em “Quincas Borba”.

“Nas obras que formam o momento culminante de Machado, há um surto de capítulos, ou seja, um surto de interrupçõ­es. Parece que ele está zombando do leitor”, afirma Bressane.

No novo projeto, o diretor vai em busca do que ele chama de “ossamenta” de “Dom Casmurro”, ou seja, aquilo que está no texto, mas não é visível a partir da superfície. Ainda que esteja na primeira versão do roteiro, o título é considerad­o definitivo: “Capitu e o Capítulo”. O cineasta pretende filmá-lo no ano que vem.

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