O paraíso são os outros
A consagração tardia de Agnès Varda
a turma da “Cahiers du Cinéma” (cadernos de cinema). O apelido alude à revista fundada em 1951 e que permanece até hoje como uma das publicações mais respeitadas sobre cinema no mundo.
Adeptos de uma visão mais purista da sétima arte e autores de uma produção teórica que fundamentava suas obras, esses diretores se tornaram a voz daquela geração de cineastas e referência do movimento para o cinema mundial.
Varda pertencia à outra turma, conhecida como “Rive Gauche” (margem esquerda [do rio Sena, em Paris]), que tinha uma concepção menos rígida de cinema. O grupo, do qual fizeram parte Jacques Demy (marido de Varda), Chris Marker, Alain Resnais e Marguerite Duras, produziu filmes com maior engajamento social e maior proximidade da literatura, das artes plásticas e da fotografia.
Foi de certo modo inevitável que Varda tenha sido, por tanto tempo, renegada às sombras de outros integrantes do movimento. A própria natureza do seu cinema, em grande parte dedicado ao registro documental de pessoas anônimas, contribuiu para deixá-la em segundo plano.
Mas a revisão histórica em curso na última década fez justiça: nem Truffaut, nem Godard, quem assina o filme seminal da nouvelle vague é Agnès Varda. CARACTERÍSTICAS O cinema de Varda é apontado por muitos como essencialmente feminista. Ela deu voz cinemática às mulheres, protagonistas frequentes de seus filmes, e abordou temáticas de gênero, como o questionamento da objetificação do corpo feminino. Mas a diretora não se identifica totalmente com esse papel: “Quando eu comecei, meu ponto não era ser uma mulher. Eu queria fazer cinema radical”.
E cinema radical ela fez. Mais do que uma integrante de qualquer movimento coletivo, Varda é um espécime do cinema de autor, no qual um artista controla todos os aspectos do trabalho de cria- ção do filme, em especial roteiro, direção, fotografia e montagem.
A cineasta chegou, inclusive, a cunhar o termo “cinécriture” (cine-escrita ou escrita cinematográfica) para descrever seu método de trabalho, no qual a obra é pensada em sua integralidade, combinando imagem, som e ritmo para veicular a mensagem pretendida.
A abordagem autoral de Varda é inequívoca: dona de um olhar peculiar, ela assumiu desde o início da carreira uma forma própria de contar histórias. Já em “La Pointe Courte”, ela combina a crise de um casal “burguês”, que questiona o sentido do amor, com a luta por sobrevivência dos moradores de um pequeno vilarejo de pescadores.
Em seu segundo filme, “Cléo das 5 às 7” (1962) —exibido na mostra competitiva do Festival de Cannes—, o drama da cantora que aguarda o resultado de uma biópsia é temperado com questões de uma França em guerra com a Argélia.
Essa tendência de ancorar sua temática existencial no contexto social e político se tornaria vocação inequívoca da obra de Varda, que, contudo, nunca se tornou panfletária. Trata-se de um cinema reflexivo sobre a época em que se vive: o indivíduo como ser pensante inserido num determinado contexto. O OUTRO Há também um traço de personalidade marcante de Varda que afeta toda sua filmografia: seu entusiasmo pelo outro.
O maior exemplo talvez esteja em “As Praias de Agnès” (2008), recebido pelo mundo cinematográfico como espécie de autobiografia filmada que seria sua derradeira obra. Na cena de abertura, a diretora, então com 80 anos, profere as seguintes palavras: “Eu faço [aqui] o papel de uma pequena velhinha, roliça e falante, que conta a história de sua vida. E, no entanto, são os outros que me interessam de verdade, quem eu gosto de filmar. Os outros que me intrigam, me motivam, me desconcertam, me apaixonam”.
A contraposição do eu ao outro já tinha sido explorada de forma interessante por Varda em “Os Renegados” (1985), ecoando os conceitos de projeção e transferência de Freud. O pai da psicanálise ensinou que as pessoas tendem a revelar, em suas falas, mais sobre si do que sobre aquilo de que falam.
No filme, Varda insere cenas de depoimentos dos coadjuvantes a respeito da protagonista, que morreu misteriosamente. Essa ferramenta pseudodocumental não só proporciona a composição de um perfil mais complexo da personagem principal como também per- mite que os demais personagens revelem um pouco de si ao falar dela.
Esse movimento pendular entre o eu e o outro se reflete ao longo de toda a obra de Varda e está no cerne de seu filme mais recente (“Visages, Villages”), feito em colaboração com o fotógrafo e muralista francês JR. O artista de 34 anos se tornou conhecido por veicular mensagens políticas por meio da impressão em grande escala de retratos fotográficos de pessoas comuns, como o de uma criança espiando sobre o muro na fronteira entre os EUA e o México.
O público brasileiro pôde acompanhar seu trabalho em 2008, quando JR estampou rostos em barracos no morro da Providência, no Rio, e, mais recentemente, nas Olimpíadas de 2016, com imagens como a nadadora de 30 metros de envergadura ascendendo das águas da Baía de Guanabara.
A parceria de Varda com JR, um artista 55 anos mais novo, poderia surpreender, mas um olhar mais atento revela que eles têm muito em comum. Ambos são vítimas da mesma doença: o interesse artístico pelo que é essencialmente humano, concretizado nas figuras de pessoas anônimas e “comuns”.
Nessa coincidência de interes- ses reside o sucesso da parceria, que resultou em uma obra (coletiva) que vai além dos trabalhos individuais dos dois artistas.
No filme, após visitar (e fotografar) as esposas dos trabalhadores de uma zona portuária na França, os enormes retratos são colados em contêineres no local de trabalho dos maridos. Num documentário tradicional de Varda, apenas as conversas com as mulheres entrariam no filme. A parceria com JR gera uma camada artística adicional: os portuários, surpreendidos pelas imagens, são afetados pela obra de arte dentro da obra de arte.
Se há algo que choca na nova obra de Varda é o fato de ela, quase nonagenária, ter abandonado sua zona de conforto, conquistada durante 60 anos de carreira, para embarcar numa aventura com alguém que acabara de conhecer e tendo como único objetivo encontrar desconhecidos pela estrada.
Varda se cristaliza como uma artista movida pelo interesse mais genuíno pelo ser humano. Comprova, assim, sua relevância como cineasta que continua tendo muito a ensinar para uma sociedade repleta de indivíduos cada vez mais ensimesmados, sem qualquer interesse naqueles que os rodeiam.