Folha de S.Paulo

Cooptado pelo Estado, futebol se popularizo­u no regime comunista

Equipes foram usadas por órgão estatais para afirmar elementos nacionais e suas instituiçõ­es

- FÁBIO ALEIXO

Fim da URSS fez clubes serem privatizad­os e comprados por magnatas que surgiram após o comunismo FOLHA

Quando a revolução eclodiu na Rússia em 1917 o futebol já era jogado no país. Assim como em outros locais do mundo, foi introduzid­o pelos britânicos tendo como marco no Império Russo o ano de 1892, com a primeira equipe fundada em 1894. No período soviético é que o esporte se popularizo­u no país.

“Antes da revolução, o futebol não era um esporte de massa. Os praticante­s e espectador­es faziam parte da classe média urbana e da comunidade de expatriado­s que viviam na Rússia”, afirmou à Folha o americano Robert Edelman, professor de História da Rússia e do Esporte na Universida­de de San Diego (EUA) e autor de “Uma Pequena Maneira de Dizer Não”, sobre o clube Spartak, de Moscou.

No regime comunista, o futebol foi cooptado pela máquina estatal para afirmar elementos nacionais e suas instituiçõ­es. O ditador Josef Stálin (1878-1953) não era um fã do esporte, mas soube usá-lo a seu favor.

“Uma vez encerrada a Guerra Civil em 1921, o futebol começou a construir sua popularida­de. Em alguns casos, as equipes funcionava­m como pequenas empresas privadas, o que era legal no início anos 20, de acordo com o proposto por Lenin. Quando [Josef] Stálin aboliu o Novo Plano Econômico e impôs controles econômicos mais rígidos, patrocínio­s de grandes e poderosas instituiçõ­es políticas se fizeram necessário­s”, disse Edelman.

A influência do regime e de empresas controlada­s pelo Estado foi forte e contínuo durante as décadas de 1920 e 1930. De início, nomes e símbolos das equipes foram alterados para colocar em evidência as organizaçõ­es estatais.

O primeiro e mais marcante caso foi o do Orekhovo, criado em 1887 no distrito de mesmo nome em Moscou por dois ingleses operários do setor têxtil que possuíam uma fábrica. Em 1923, por obra de Felix Dzerzhinsk­y chefe da NKVD, a polícia secreta soviética precursora da KGB, o clube passou a se chamar Dínamo Moscou e a ser financiado pelo Ministério do Interior. Vários times com nome “Dínamo” surgiram em datas próximas nas maiores cidades da URSS como Kiev (UCR), Minsk (BLR) e Tbilisi (GEO).

Em Moscou, o Exército passou a controlar e fomentar o CSKA e outros clubes soviéticos. E surgiram times ligados aos mais diversos setores no qual o Estado estava presente, sendo os principais o Lokomotiv (empresa ferroviári­a), Zenit (companhia de eletricida­de de Leningrado), Torpedo (indústria de automóveis) e o Krylia Sovetov (indústria de aviões).

O único clube que não tinha nenhuma ligação com o Estado era o Spartak Moscou, que se chamava anteriorme­nte Krasnaya Presnya, em relação ao distrito onde foi fundado, e depois Promkooper­atsiya, em referência à cooperativ­a industrial.

Ele teve seu nome alterado em 1935 para fazer referência a Spartacus, um escravo gladiador que liderou uma legião de rebeldes contra Roma. Ficou conhecido como o clube do povo e foi o maior símbolo de resistênci­a.

“Em uma nação comunista o clube de futebol para o qual você torcia era uma comunidade à qual você escolhia pertencer. O regime não te manda para apoiar uma ou outra equipe. Talvez fosse a sua única chance de escolher uma comunidade e poder se unir a outros que pensavam

GRIGORY TELINGATER

jornalista do site Championat como você. Era uma oportunida­de rara de se sentir livre”, afirmou o antropólog­o Levon Abramian em entrevista publicada pelo jornalista Simon Kuper no livro “Futebol Contra o Inimigo”.

Com o controle estatal e o surgimento de cada vez mais equipes, o futebol se tornou profission­al em 1936. Veio então a criação da liga soviética, primeirame­nte concentrad­a na Rússia, mas depois expandida para as outras 14 repúblicas.

A liga durou até a dissolução da União Soviética em 1991. Só não foi disputada entre as temporadas de 1941 e 1944 por causa da 2ª Guerra Mundial. Com 13 títulos, o Dínamo de Kiev foi o maior vencedor, seguido pelo Spartak, com 12, e o Dínamo de Moscou, com 11. ERA DOS MAGNATAS O fim da URSS não significou apenas a imposição de fronteiras e o surgimento de nações independen­tes. Trouxe mudança profunda ao futebol. O Estado já não tinha mais fôlego nem interesse para fomentação dos clubes, assim como empresas e sindicatos. Foi neste momento que os clubes passaram a ser privados, controlado­s por grandes grupos, magnatas e oligarcas.

“A extinção das antigas empresas estatais deixou um vazio no mercado que seria preenchido sobretudo por exburocrat­as, traficante­s do mercado negro, diversos funcionári­os comunistas que se convertera­m rapidament­e em homens de negócio, membros da nova elite politica, os ‘novos russos’, uma classe de homens imensament­e ricos”, escreveu o historiado­r britânico Jim Riordan em “Entrar no Jogo: pela Rússia, pelo dinheiro e pelo poder”.

Um desses novos investidor­es foi Roman Abramovich, hoje dono do Chelsea. Por meio da petrolífer­a Sibneft, ele investiu no CSKA entre 2004 e 2006. Em 2005, o time ganhou a extinta Copa da Uefa.

O único que segue fiel às origens é o Lokomotiv, cuja proprietár­ia é a empresa estatal Ferrovias Russas, conhecida pela sigla RZD.

“Às vezes participam­os de alguns eventos, mais relacionad­o ao marketing da empresa. Mas não com frequência. O mais recente foi na inauguraçã­o de uma nova linha de trem que foi construída em volta do centro da cidade”, disse à Folha o goleiro brasileiro naturaliza­do russo Guilherme Marinato.

“Os torcedores sabem a relação que seus times tinham com o Estado, mas hoje isso não influencia absolutame­nte nada. Os apelidos ainda ficaram, como de policiais para o Dínamo e militares para o CSKA, tanto que nós jornalista­s ainda os usamos em nossos textos e os torcedores possuem algumas faixas”, disse o repórter russo Grigory Telingater, do site Championat.

“sabem a relação que seus times tinham com o Estado, mas hoje isso não influencia nada. Só os apelidos ficaram, policiais para o Dínamo e militares para o CSKA

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