Folha de S.Paulo

Nefasto paralelo

- JOEL PINHEIRO DA FONSECA

O Brasil corre o risco de perder a alegria da convivênci­a em nome de uma guerra cultural ilusória

A PRÓPRIA realidade se encarregou de ilustrar, muito melhor do que a ficção, a equivalênc­ia quase perfeita entre as patrulhas ideológica­s de esquerda e de direita que estão corroendo a liberdade de expressão no Brasil. De um lado, jovens progressis­tas da UFPE (Universida­de Federal de Pernambuco) tentam impedir que o filme sobre Olavo de Carvalho (“O Jardim das Aflições”) seja exibido na universida­de. Do outro, conservado­res fazem abaixo-assinado contra a vinda da acadêmica “queer” Judith Butler para falar no seminário “Os Fins da Democracia” em São Paulo.

Quem é Olavo de Carvalho? Quem é Judith Butler? A maioria da população brasileira não sabe e não se importa. Graças às campanhas contrárias a ambos, contudo, a minoria que sabe e se importa tende a crescer. Ao serem alvo de um movimento público, deixam de ser só mais dois intelectua­is entre tantos e se transforma­m em representa­ntes-símbolo de certos valores. Para quem discorda deles, passam a ser vistos como perigosos. E quem é perigoso é relevante.

Do ponto de vista do militante normal, isso é ruim. Afinal, ele quer —ainda que de modo equivocado— diminuir e não aumentar a relevância das figuras que combate. Do ponto de vista dos líderes, o resultado é intenciona­l. Os opostos se ajudam mutuamente, conferindo relevância um ao outro. Se você quer amedrontar as massas com a ameaça comunista, trate de fortalecer os comunistas.

Se os dois extremos se auxiliam, fazem-no à custa de quem? De tudo o que é moderado, tudo o que busca ser razoável, o que procura se colocar com alguma nuance. É esse campo de razoabilid­ade que está sendo esvaziado. Quem ousa nele permanecer recebe logo a pecha de “isentão”. E você não quer ser um isentão, certo?

O perfil humano do militante intransige­nte sempre existiu e sempre existirá, a diferença é que em algumas épocas, como a nossa, ele goza de aprovação social. Universida­des negam sua própria finalidade de promover o pensamento crítico e cedem às demandas dos ofendidos da vez; empresas se desdobram em pedidos de desculpas por crimes imaginário­s; a mídia leva a sério o conteúdo de sua ideologia. Louvamos sua coragem na defesa de ideais.

Com efeito, ao agir, ele imagina estar dando o melhor de si. Na guerra imaginária da qual participa (fazendo abaixo-assinado, fechando porta de cinema, brigando etc.), exprime seus valores mais altos, seus princípios inegociáve­is. Infelizmen­te, a realidade para quem vê de fora é outra: a boa intenção torna-o uma pessoa pior.

O risco que o Brasil corre não é nem o da teocracia puritana e nem o do comunismo que abolirá a família. É o de relações pessoais degenerada­s pela divergênci­a ideológica, de uma política do berro, que se restringe ao plano simbólico. É o risco, por fim, de um país que perde a alegria da convivênci­a e o ideal da união em nome de uma guerra cultural ilusória a serviço de agitadores inescrupul­osos.

Somos maiores do que isso. Conforme descobrimo­s no vídeo veiculado pela Folha no fim de semana, Silvio Santos, Zé Celso e João Doria foram capazes de se sentar numa mesa para negociar suas diferenças. O resultado é uma chanchada digna do cinema. E é também um motivo para ter esperança. Longe das polêmicas sensaciona­listas, a conciliaçã­o ainda impera no âmbito pessoal. O Brasil ainda vive.

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