Folha de S.Paulo

Cinema mudo

Luli Penna abre mão dos balões para contar enredo romântico de ‘Sem Dó’, HQ em preto e branco passada na São Paulo de 1920

- THALES DE MENEZES

DE SÃO PAULO

A ilustrador­a paulistana Luli Penna escolheu personagen­s desconheci­dos para retratar sua cidade. É a São Paulo dos anos 1920 que serve de cenário para a HQ “Sem Dó”, que terá lançamento nesta terça (31), na Livraria da Vila.

Com uma relevante produção de cartuns e ilustraçõe­s, incluindo colaboraçõ­es para a Folha e a revista “Piauí”, Luli apresenta sua primeira história em quadrinhos.

A estreia exigiu muito fôlego para ser desenhada, mas é fácil e agradável de ser leitura. Sem balões de diálogos e em preto e branco, assemelhas­e a um filme mudo. Alguns quadros (poucos) exibem uma fala de personagem sobre fundo preto, recurso do cinema sem som daquela década.

“Queria a história contada à maneira da época”, explica Luli à Folha. “Desde o começo do trabalho abandonei o recurso dos balões. Eu amo cinema mudo. Copiei na HQ alguns fotogramas de ‘Limite’, filme que o Mário Peixoto rodou em 1930, que eu amo e assisti muitas vezes.”

Luli passou sete anos se dedicando a “Sem Dó”, no tempo que sobrava entre os trabalhos de ilustração. “Meu filho cresceu, eu me separei, deprimi, então, me apaixonei. Enfim, sete anos se passaram desde então. Mas a ideia de uma HQ veio até antes.”

A autora credita sua maior inspiração à leitura de “Persépolis” (2000), premiadíss­ima HQ da iraniana Marjane Satrapi sobre o antes e o depois da revolução de 1979 no Irã.

“Quando terminei de ler, quis fazer uma história grande também, sabendo que jamais chegaria aos pés da dela. Marjane, além do talento, estava numa esquina do mundo. Bisneta do imperador e filha de marxistas, numa Teerã industrial­izada e islâmica, e contou tudo do ponto de vista de uma criança. Incrível!”

Ela pensou em desenhar a história de seu avô e um tioavô, arquitetos de renome nos anos 1950. Já tinha desenhado uma parte, mostrando a vinda da família da Espanha para o Brasil, cruzando o Atlântico, mas o roteiro ainda não estava fechado. TIAS-AVÓS Luli estudava a política do século passado —o avô era um anarquista radical— e passou a entrevista­r pessoas, principalm­ente da família, para conhecer a vida no bairro do Brás. Foi quando uma prima contou a história de duas de suas tias-avós.

O avô arquiteto saiu do projeto e Luli mudou o roteiro para mostrar duas mulheres quase anônimas vivendo numa sociedade repressora. “Sem Dó” se transformo­u numa história de amor e perda, de personagen­s buscando fugir de sua resignação.

Na intenção de escrever sobre “mulheres que resistisse­m a tudo”, a autora acrescento­u na parte final do trabalho um último capítulo, passado na década de 1970. Tenta romper com a imagem idílica da São Paulo das belas praças e da imponente Estação da Luz.

“Quando comecei, há sete anos, ainda viria o 7 a 1 da Alemanha, a depressão do golpe, esse clima pesado. Resolvi fazer um final melancólic­o, contrastan­do com aquele Brasil do café, dos anos 1920 e 1930. Uma coisa linda, mas um projeto que não deu certo.

Um recurso charmoso de “Sem Dó” é intercalar quadrinhos de narrativa da história com muitos que reproduzem anúncios de revistas da época. Para Luli, a seleção desses anúncios, de gramofones a bombons, foi uma das partes mais gostosas do trabalho.

Sem uma rotina exclusiva para desenhar a HQ, hoje ela lamenta ter esquecido de incluir alguns anúncios. “Fiz uma pesquisa enorme. Já tem muita coisa digitaliza­da, como as revistas ‘Cena Muda’ e ‘A Cigarra’, e isso facilitou. Tenho uma coleção que herdei de umas dessas tias-avós.”

Luli parece disposta a começar outra novela gráfica. “Mas eu quero ir mais para trás, para o século 19 mesmo.” AUTORA Luli Penna EDITORA Todavia QUANTO R$ 64,90 (192 págs.) LANÇAMENTO terça (31), às 19h, na Livraria da Vila, r. Fradique Coutinho, 915, tel. (11) 3814-5811

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