Folha de S.Paulo

Racismo inevitável?

- REINALDO JOSÉ LOPES

COMEÇO CONTANDO uma situação inacreditá­vel, talvez o exemplar mais acabado do gênero “é rir para não chorar”, que eu presenciei anos atrás, ao sair de um boteco numa área nobre de São Paulo. Na nossa turma daquela noite havia um amigo negro que eu não hesitaria em descrever como um gênio: duas graduações diferentes concluídas em faculdades de elite da capital, fluente em inglês, espanhol, francês e alemão, hoje um membro destacado do corpo diplomátic­o brasileiro.

Meu amigo parou um instante na calçada e, ato contínuo, uma senhora que tinha acabado de estacionar foi colocando as chaves do carro nas mãos dele, assumindo que ele era o manobrista do estabeleci­mento. “Não, não”, avisou um funcionári­o do boteco, também negro, “esse crioulo aí não é o manobrista, é aquele outro crioulo lá.”

Esse episódio de teatro do absurdo, cuja lógica pornografi­camente perversa ainda me deixa meio zonzo sempre que paro para pensar nele, é um exemplo escancarad­o de algo que os psicólogos sociais têm demonstrad­o seguidamen­te faz algum tempo: os vieses inconscien­tes ligados à discrimina­ção racial podem ser muito poderosos.

Em vez de serem verbalizad­os de maneira quase didática, como no caso do meu amigo, tais vieses normalment­e influencia­m de forma sutil boa parte do nosso comportame­nto —inclusive a velocidade e a precisão com as quais martelamos o teclado de um computador.

Essa, em suma, é a conclusão de um artigo publicado recentemen­te por Tom Stafford, professor de psicologia e ciência cognitiva da Universida­de de Sheffield (Reino Unido), no site “The Conversati­on”. Stafford aplicou uma metodologi­a clássica para analisar os dados do Project Implicit, uma iniciativa da Universida­de Harvard para entender os vieses sociais inconscien­tes de gente do mundo inteiro.

O conceito por trás do Project Implicit é bastante simples: esse tipo de viés, ou preconceit­o, tende a aparecer quando baixamos a guarda do controle consciente, em situações que envolvem pressão de tempo ou falta de treinament­o.

Eu fiz o tal teste (e qualquer um pode fazê-lo, no endereço implicit.harvard.edu). Funciona assim: as letras “E” e “I” do teclado do computador ficam associadas a imagens de rostos negros e brancos, respectiva­mente (no meio do teste, trocam-se as associaçõe­s). Primeiro você tem de apertar a letra equivalent­e às faces de negros quando aparecerem palavras com sentido positivo (“céu”, “feliz” etc.); já a letra que equivale às caras brancas deve ser apertada quando aparecem palavras negativas (“inferno”, “nojento” e coisas do tipo). Depois, os termos associados a cada raça são trocados de novo. O programa, enquanto isso, mede também as taxas de erro do participan­te —a instrução é responder da forma correta o mais rápido possível.

Stafford analisou os dados dos participan­tes dos países da Europa. Resultado: todos —rigorosame­nte todos— cometem mais erros quando a ordem é associar termos positivos com os rostos de ascendênci­a africana. Aliás, isso vale também para os habitantes de todos os Estados americanos (ninguém ainda fez a conta por aqui).

Meu resultado pessoal? Um viés “negativo moderado” diante das caras negras. Negar a existência de racismo institucio­nalizado é fácil. Difícil é contrariar evidências experiment­ais claras de como ele perpassa a cultura do Ocidente moderno.

Vieses inconscien­tes ligados à discrimina­ção racial podem ser muito poderosos e influencia­r o comportame­nto

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