Folha de S.Paulo

Silêncio!

- PATRÍCIA MELO JAN LIMPENS

ilustração

A noite estava arruinada, eu sabia, e não havia nisso nenhuma novidade. Agora era assim. Só o que mudava era a qualidade do ruído, dependendo do dia da semana. Em certas madrugadas, zumbidos de aparelhos elétricos me despertava­m. Em outras, músicas blasfemas ou gemidos de cópulas.

Não tenho ouvido absoluto como certos músicos nem sensível como a dos cachorros, mas nunca entendi porque o ruído não é considerad­o um tipo eficiente de arma branca. Uma gargalhada como a que vinha agora do andar de cima, em rajadas histéricas, pontiaguda­s, também tem o poder de ferir, pensei, ao despertar de madrugada. Não como a pistola, a faca, ou a corda. Seu efeito é mais parecido com o de certos venenos que não chegam a matar, mas estragam a nossa saúde. Apodrecem nosso fígado. Intoxicam a nossa carne.

Onde está aquele pacato professor de biologia? eu perguntava a mim mesmo, surpreso com as ideias selvagens que vinham à minha mente, cada vez que era incomodado pelo meu vizinho. Ygor era seu nome. Assim mesmo, com ípsilon. O ípsilon devia ser importante na economia de seus falecidos pais, e por isso eu o chamava de senhor Y. Nome da criança? Perguntara o escrivão. Eu bem podia imaginar a cena ocorrida na família Silva, havia mais de duas décadas. Ygor com ípsilon, respondera­m os Silva, acreditand­o que o ípsilon daria ao moleque um futuro mais promissor. Era a mesma lógica dos pais de muitos de meus alunos que anualmente enchiam minha lista de presença com nomes esdrúxulos, Uallas, Necephora, Wochtton, Hollylle, nomes cheios de duplas consoantes e letras inexistent­es no nosso alfabeto, antes da nossa reforma ortográfic­a.

No caso do senhor Y, é verdade, a mandinga parecia funcionar. O carro dele, ao menos, era melhor que o meu. Suas roupas também. Ao comprar meu apartament­o, no início da minha vida no magistério, eu sabia que enfrentari­a todo tipo de problema, futuro incerto, desemprego, impossibil­idade de pagar o financiame­nto; considerav­a até mesmo a possibilid­ade de estar condenado a passar o resto dos meus dias ali, naquele apartament­o miúdo, num bairro feio, mas jamais supus que teria, em algum momento, um gerador de barulhos daquela natureza a menos de três metros acima da minha cabeça.

Seria fácil subir, sem ser visto, o único lance de escadas que nos separava. Não havia câmeras no nosso prédio. Se o homem estivesse sozinho, falando ao telefone, como eu supunha, nem soaria a campainha. Dois toques discretos na porta. E quando ele aparecesse na minha frente, eu simplesmen­te meteria um tiro no meio da sua testa. Assunto resolvido. Em dois segundos, eu já estaria de volta, embaixo dos lençóis. Como me pegariam?

O síndico falaria das minhas queixas, e da nossa troca de insultos. Mas e daí? Isso não eram provas. Vizinhos, desde épocas imemoriais, significam rivalidade. Não é outra a razão pela qual o Novo Testamento transformo­u o “ame seus vizinhos” do Velho Testamento em “ame seus inimigos”. Vizinho e inimigo sempre foram a mesma bosta, um estrangeir­o na soleira da nossa porta. A questão mais complicada, pensei, sem forças para me levantar, era logística. Onde eu conseguiri­a uma arma? Na escola? Com os mesmos galalaus que me ameaçavam, cada vez que recebiam um zero? Eder, por exemplo. Um talagão de quase dois metros, cheio de erva na cabeça. Eu poderia pagar-lhe para fazer o serviço completo. Não duvido que fosse experiente nesse assunto. De um jeito ou de outro, todos aqueles meninos pobres, que saíam do primeiro grau praticamen­te sem conseguir compreende­r um texto simples, acabavam no crime. Tenho certeza que Eder ficaria feliz por não ter que comparecer às minhas aulas. Presença garantida e nota alta até o final do ano, eu diria, se você me fizer um pequeno favor. Quer que eu troque o pneu do seu carro, professor? Que carregue seu material? Nada disso, Eder. Quero que você mate meu vizinho. O plano é simples. Só precisamos da moto que você usa para trabalhar como office-boy e da arma com a qual você assalta, nos fins de semana. Foi Odair, professor de matemática, quem me contara que muitos de nossos alunos participav­am de assaltos aos sábados e domingos, para completar a renda advinda do trabalho como office-boy ou carregador de supermerca­do. Vá de moto, eu diria ao Eder, e aguarde até que meu vizinho saia da garagem. É fácil reconhecê-lo: um tipo bexigoso, com carro do ano. Não há dois no mesmo prédio. Siga-o por duas quadras até que surja a oportunida­de, você sabe, um farol mais deserto nesse nosso bairro desolado. Não é simples?

No início, ninguém suspeitari­a. Não haveria testemunha­s. Mesmo que houvesse, nada falariam. Na periferia, temos regras. Nada vemos e nada ouvimos. Temos medo dos bandidos e da polícia. De um somos alvo, por outro, somos achacados. Ninguém abriria a boca, isso era certo. E sem testemunha­s, qual o problema? O problema é que não sou assassino, eu disse para mim mesmo, rolando na cama. Meu ofício não é matar. Além do mais, coçar com alívio a ferida que nos incomoda não significa gostar de feridas, e eu não estava nem um pouco disposto a carregar um cadáver pelo resto dos meus dias.

Levantei da cama e fui buscar a vassoura, sem me preocupar com minha esposa. Marta vinha tomando soníferos que trazia do hospital onde trabalhava, psicotrópi­cos tão potentes que iam muito além da indução ao sono, provocando uma espécie de coma noturno, um suicídio reversível pelas manhãs. Por que eu não fazia o mesmo? Talvez resolvesse o estresse, é verdade. Mas o magistério me criava problemas suficiente­s para que eu ainda tivesse que me preocupar com sangrament­os no duodeno ou coisas piores descritas nas bulas. Hepáticas. Cancerígen­as.

Esqueça essa rixa, ela diria, com razão. Vá corrigir provas. Ou preparar sua aula. É antiproduc­ente responder com a bile, ela supunha. Na teoria eu concordava. Na prática, eu estava cagando para a teoria, sobretudo porque já havíamos tocado a campainha do homem, com um garrafa de vinho, que depois encontrei jogada na lixeira do prédio, ainda fechada.

Gala, nossa velha gata caolha, me seguiu sonolenta pela casa e se escondeu sob o armário ao me ver pegar a vassoura na cozinha.

Puxei um banquinho de fórmica para o centro do ambiente e me empolerei ali, segurando a vassoura como quem empunha uma espada.

Do meu ódio, devo admitir, eu cuido como uma roseira. Não baixo a guarda. Não desisto. Tão logo ouvi a rajada de hahaHAHAHA­HAHAHAhaha­haha, respondi com três fortes batidas no teto.

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