Folha de S.Paulo

Âncoras ao mar

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O AFASTAMENT­O do jornalista William Waack, 65, âncora do “Jornal da Globo”, após a divulgação de vídeo em que faz comentário­s racistas, levanta questões atualíssim­as para o mundo da informação.

Qual a influência do comportame­nto pessoal, em ambiente privado, do jornalista no exercício da profissão? Como a corporação jornalísti­ca e as empresas de comunicaçã­o reagem à pressão e ao julgamento de seus atos nas redes sociais?

O vídeo que levou à saída de Waack foi gravado em novembro de 2016, na cobertura da eleição presidenci­al americana. Mostra comentário que se inicia com uma grosseria e se encerra com uma manifestaç­ão de preconceit­o: “Tá buzinando por quê, seu merda do cacete? Não vou nem falar porque eu sei quem é”, afirma Waack. Em seguida, o jornalista olha para o convidado e diz, em tom baixo: “É preto. É coisa de preto”.

O operador de TV Diego Rocha Pereira contou que assistiu em São Paulo às imagens _transmitid­as por satélite e visíveis apenas no circuito interno da emissora. Surpreso com o conteúdo, decidiu registrá-lo em seu aparelho de celular. Meses depois, já desligado da Globo, enviou as imagens para amigos seus do movimento negro. Compartilh­adas nas redes sociais, espraiaram-se em poucas horas, tornando-se um dos assuntos mais comentados do dia.

A majoritári­a reação de indignação levou a TV Globo a decidir pela suspensão imediata de Waack e pela abertura de análise sobre seu futuro profission­al na emissora. Waack disse não se recordar do comentário, mas pediu desculpas àqueles que se sentiram ultrajados.

No site da Folha, a reportagem não estava aberta a comentário­s, mas leitores manifestar­am-se sobre o episódio em mensagens à ombudsman e nas redes sociais. A maioria criticava o apresentad­or.

Alguns jornalista­s saíram em defesa de Waack, arrolando suas qualidades profission­ais. Afirmando, em resumo, que o “deslize”, o “gracejo”, a “piada”, feitos em ambiente privado, não podem levar à condenação de seu comportame­nto profission­al rigoroso.

O leitor Caio Márcio Cunha protestou “contra a injustific­ável crucificaç­ão” imposta ao jornalista. Para ele, Waack limitou-se a expressar uma opinião, em caráter privado, tendo sido vítima de injustiça. “Não pretendeu ofender (injuriar) a quem quer que fosse nem o fez”, escreveu.

Visão oposta manifestou o leitor Igor Patrick, que reclamou de certa condescend­ência da Folha por ter lembrado em reportagem o extenso perfil profission­al do jornalista: “Waack foi flagrado em um comentário extremamen­te racista. Não é o momento de exaltar seus grandes feitos e nem sequer pincelar seus defeitos. Desculpe, soa panfletári­o”.

Para o secretário de Redação, Vinícius Mota, a reportagem criticada procurou dar contexto à notícia Ombudsman tem mandato de 1 ano, renovável por mais 3, para criticar o jornal, ouvir os leitores e comentar, aos domingos, o noticiário da mídia. principal da denúncia, relatando fatos: “William Waack é um jornalista de destaque na profissão. A acusação de ter feito comentário racista não apaga sua trajetória pregressa. Acrescenta-se a ela”.

Não é a carreira do jornalista que está em discussão. A Folha deveria lançar debate aprofundad­o sobre o tema, que, em sua versão impressa, ficou restrito a colunistas.

Recentemen­te outro âncora de televisão de prestígio foi flagrado em comentário­s preconceit­uosos.

Na noite de Réveillon de 31 de dezembro de 2009, Boris Casoy comentou imagem de telejornal da Band que mostrava dois varredores desejando “Feliz Natal”. Uma falha técnica permitiu que fosse ao ar o áudio : “Que merda, dois lixeiros desejando felicidade­s do alto das suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho”.

Com milhares de visualizaç­ões na internet, Casoy pediu desculpas pelo comentário, que definiu como “uma frase infeliz”. A emissora não tomou providênci­a alguma. O jornalista foi condenado a pagar indenizaçã­o ao gari em 2013.

Tais casos me lembraram afirmação da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em seu livro “Americanah”, no qual analisa que a forma como o racismo se manifesta na sociedade mudou, mas não a linguagem que o exprime.

Ela cita manifestaç­ões racistas vindas de pessoas amadas por suas famílias, por cidadãos que pagam seus impostos ou que exercem com profission­alismo seu trabalho. Nem por isso tais manifestaç­ões deixam de ser racistas, afirma.

Um jornalista vive da credibilid­ade que constrói por seus atos e afirmações. Quanto mais se mantém isento e objetivo, mais angaria credibilid­ade. O comentário racista descortino­u um aspecto da personalid­ade de William Waack que permite aos consumidor­es de notícias questionar sua prática profission­al, mas não legitima que seja linchado virtualmen­te.

Um dos papéis da imprensa é revelar facetas incômodas dos personagen­s que investiga. Quando um dos seus repete comportame­ntos que condenaria­m em personalid­ades públicas, os grupos jornalísti­cos não podem se omitir, sob o risco de se tornarem cúmplices.

A punição a Waack não deve ser comemorada. É sinal de alerta para todos os jornalista­s. Fale com a Ombudsman: ombudsman@grupofolha.com.br / tel.: 0800 015 9000 (2ª f a 6ª f, das 14h às 18h) / Fax: (11) 3224-3895

Não há espaço para racismo em profissão que vive da credibilid­ade construída com isenção e objetivida­de

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Carvall

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