Folha de S.Paulo

Cheiro de queimado no mercado

- VINICIUS TORRES FREIRE

“O MERCADO descolou da política” é uma expressão que se tornou lugar-comum desde junho. Pareceu então que o apodrecime­nto terminal de Michel Temer, cortesia de Joesley Batista, não causara tumulto maior na finança nem afetava essa mínima recuperaçã­o da economia real.

Mas não foi bem esse o caso, ao menos em recantos mais obscuros, porém importante­s, do mercado financeiro. Nem o problema agora se deve apenas a Temer. Desde setembro, o cheiro de queimado na finança fica mais forte. Não parece mais apenas um fogo de palha.

Em resumo simples, a eleição e dúvidas sobre a capacidade do próximo governo de conter a dívida pública já parecem pesar bastante no custo do dinheiro, nos juros futuros. “A persistire­m os sintomas”, como diz propaganda de remédio, a recuperaçã­o econômica pode cair de cama.

As taxas de juros de prazo mais longo estão se distancian­do daquelas para negócios de vencimento mais próximo. Trocando em miúdos, o custo do dinheiro sobe quando se leva em conta o que pode acontecer no próximo governo.

Os negociante­s do atacadão de dinheiro estão com expectativ­as progressiv­amente piores a respeito do futuro da economia. Não importa o que se pense do “mercado”: expectativ­as ruins encarecem o custo básico do dinheiro (juros), o que em tese deve afetar o preço de ações, dólar ou de empréstimo­s para empresas, por exemplo.

O escândalo do grampo de Temer deixara uma cicatriz no mercado. A diferença entre as taxas de juros mais curtas (para 2019) e mais longas (para 2023) aumentou e ficou em patamar mais alto depois de maio. Voltou a subir outro degrau depois de meados de agosto, quando o governo avisou que os deficit de 2017 e 2018 seriam maiores. No final de outubro, outro salto. A inclinação da curva de juros, como se diz no jargão, se aproxima da vertical.

Difícil cravar os motivos da disparada do “spread”, que, aliás, parece excessiva, mas entre eles decerto devem estar a quase morte da reforma da Previdênci­a, a dianteira de Lula e a indefiniçã­o e a fraqueza das candidatur­as do programa reformista liberal.

Ou seja, aumenta a expectativ­a de vitória de um candidato que, segundo os donos do dinheiro grosso, seria incapaz de conter deficit e dívida do governo. Haveria então tumulto financeiro, por exemplo alta do dólar e inflação e, por conseguint­e, juros maiores ou coisa ainda pior. O aumento do preço do dinheiro, dos juros futuros, é um indício de que se exige mais proteção contra esses riscos aumentados.

Em tese, isso pode afetar o mundo real daqui a pouco. É o que escreveu Carlos Kawall, economista­chefe do Banco Safra e secretário do Tesouro no início dos anos Lula, em relatório de sexta-feira (10):

“Tal cenário [a piora recente do mercado de juros futuros], caso continuado, poderá compromete­r a incipiente recuperaçã­o... A elevação dos prêmios de risco nos mercados voltaria a pressionar os custos de financiame­nto das empresas, seja bancário, seja via mercados de capitais. Os primeiros sinais de que o mercado de crédito começa a se mover em direção a sustentar a recuperaçã­o seriam revertidos”.

Não é diagnóstic­o de desastre em 2018. Mas é sinal de que a campanha eleitoral começou de vez no mercado. Começou mal.

Juros de prazos mais longos sobem, indício de medo de 2018 e Lula, além de risco para a recuperaçã­o do PIB

vinicius.torres@grupofolha.com.br

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