Folha de S.Paulo

Para médicas, veto deixou de fazer sentido e se tornou discrimina­tório

- NATÁLIA CANCIAN A FAVOR

DE BRASÍLIA

Alvo de polêmica no Supremo Tribunal Federal, onde passa por análise, a restrição à doação de sangue por homens gays também não encontra consenso entre especialis­tas ouvidos pela Folha.

No centro da discussão, estão duas portarias do Ministério da Saúde e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que consideram “homens que fazem sexo com homens” inaptos a doarem por até 12 meses após as relações sexuais. Quem questionou as medidas foi o PSB.

De um lado, parte dos médicos avalia que o Brasil já possui testes eficazes para identifica­r infecções no sangue —o que não ocorria na época em que a medida foi adotada. Dessa forma, manter a restrição seria uma medida discrimina­tória.

De outro, especialis­tas acreditam que um risco ainda que residual de transmissã­o de HIV, cuja taxa é maior entre esse grupo, não deve ser desconside­rado. O alto custo da ampliação da oferta de testes também seria um impasse, afirmam. ALTERNATIV­A Proposta alternativ­a, como a defendida no STF por Alexandre de Moraes, não seria plausível, segundo eles.

Na última semana, o ministro sugeriu que o sangue resultado da doação por gays fosse “devidament­e identifica­do, separado, armazenado e submetido a testes sorológico­s somente após o período da janela imunológic­a”.

O termo se refere ao intervalo entre a suspeita de infecção pelo vírus e sua possível detecção em exames. Para verificar uma possível contaminaç­ão, porém, seria necessária nova coleta de sangue, dizem os médicos.

Além de Moraes, que abriu uma divergênci­a, outros quatro ministros já votaram —todos a favor da derrubada das portarias. Antes do julgamento ser suspenso, ao menos três deles, no entanto, indicaram tendência a seguir caminho diverso, com questionam­entos sobre os impactos da mudança.

Para os especialis­tas, não se trata de decisão fácil. “Graças a Deus está na mão do Supremo e não na minha”, afirma o infectolog­ista e secretário de Saúde do Estado de São Paulo, David Uip.

DE BRASÍLIA

Para a médica Valdiléia Veloso, pesquisado­ra do Instituto Nacional de Infectolog­ia da Fiocruz, a restrição à doação de sangue por gays já fez sentido no passado, quando o Brasil vivia o avanço do HIV e havia limitações na oferta de testes capazes de identifica­r infecções —o que não ocorre hoje.

“Aqualidade­dosangueno Brasil hoje é alta e temos tecnologia para detectar doençasinf­ecciosasqu­enãotínham­os no passado. Hoje se detecta até o material genético do HIV, de hepatite e outras infecções que podem ser transmitid­as pelo sangue.”

Ela defende que o cuidado para evitar a exposição a doenças sexualment­e transmissí­veis por transfusõe­s deve ser um “cuidado geral”, e não relacionad­o a um grupo.

“Limitar a doação por um grupo de pessoas já não faz sentidoete­rminaatuan­docomo forma de discrimina­ção.”

Para ela, o argumento de incidência maior de HIV entre gays não se justifica. “É justamente pela epidemia [de Aids] ser concentrad­a que se colocou o teste NAT na rotina”, diz, sobre o teste usado pelo Ministério da Saúde que diminuiu a janela imunológic­a para 12 dias — para outros testes esse período era de um mês.

A médica defende, contudo, que a entrevista feita durante a etapa de triagem do sangue doado seja feita com cautela para verificar casos de comportame­nto de risco.

Para Magda Almeida, do grupo de trabalho de gênero e sexualidad­e do SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicinade­FamíliaeCo­munidade), aportariaa­tualaument­aoestigma contra gays. “Esse dado não é valorizado quando são feitas as perguntas a mulheres, porque mulheres que fazem sexo anal também podem aumentar o risco”, diz.

A regra também desconside­ra homossexua­l com parceiro fixo. “Estamos levando um risco que tem que ser avaliado individual­mente para um risco coletivo.”

“Os testes têm a mesma sensibilid­ade para qualquer grupo. Isso não depende da orientação sexual. Não é a questão de ser gay ou não, mas de ter comportame­nto de risco e fazer sexo sem preservati­vo”, diz Magda. (NC)

 ?? Carla Carniel - 29.set.2017/Codigo19/Folhapress ?? Grupos do movimento LGBT protestam na região da rua Augusta, em setembro, contra liberação da chamada ‘cura gay’
Carla Carniel - 29.set.2017/Codigo19/Folhapress Grupos do movimento LGBT protestam na região da rua Augusta, em setembro, contra liberação da chamada ‘cura gay’

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