ENTÃO É NATAL
Famílias se mudam de favela na região da Barra Funda para canteiro na marginal Tietê em busca de maior visibilidade para receber doações, que aumentam nesta época do ano
Basta ouvirem uma buzina para as crianças largarem o balanço de pneu em um canteiro da marginal Tietê e correrem para a calçada aos gritos: “Doação, doação”. Quase sempre, porém, o alvoroço é em vão. Buzinada é o que mais se ouve ali, por causa do trânsito intenso em um dos acessos da ponte da Casa Verde, onde seis famílias montaram acampamento há cerca de um mês.
Moradoras de uma favela próxima dali, atrás do terreno onde funcionava o parque Playcenter, essas famílias se mudaram para debaixo das árvores do canteiro na esperança de arrecadar doações, que aumentam nesta época do ano por causa da proximidade do Natal.
“Recebemos de tudo, principalmente cestas básicas. Lá na favela onde moramos ninguém vai”, diz Rosenira Ribeiro, 52, espécie de líder do acampamento e responsável por dividir tudo o que recebe igualmente entre as famílias.
A proximidade dos carros garante maior visibilidade, ela acredita. Por isso, a mudança para o ponto estratégico é repetida sempre na mesma época por toda a família há pelo menos três anos. “Passamos sempre o Natal aqui e o Ano-Novo na favela”, diz seu marido, o carroceiro Alexandre José da Silva, 35.
Ele afirma que as doações são mais frequentes aos finais de semana e aumentam conforme as festas de final de ano se aproximam.
NaúltimavésperadeNatal, ele lembra, um carro parou e lhes entregou uma ceia inteira,comumperuassado“enorme”.“Outrapessoadesceudo carro e deu R$ 100 para cada um”, lembra o carroceiro.
Neste ano, ele espera receber brinquedos para poder presentear os filhos. Um deles pediu uma bicicleta de Natal. “Com o que ganho mal dá para comer. As doações são o único jeito de eles ganharem alguma coisa.”
A barraca da família está montada no meio do canteiro, onde dormem o casal, três filhos, duas sobrinhas e um neto. Todos com idades de 3 a 12 anos. A ideia de acampar em busca de doações, neste ano, foi seguida por ao menos outras três vizinhas da favela, que montaram suas barracas ao redor da dela. Elas também levaram seus filhos, e outras quatro crianças se juntam aos filhos de Rosenira nas brincadeiras.
As tendas são feitas de lona preta sobre pallets, estrados de madeira que amparam os colchões onde dormem. Quase todos ali se conhecem da Favela do Tubo, no Limão, na zona norte, de onde tiveram que sair há cerca de dois anos após um incêndio destruir a maioria dos barracos.
De lá, eles se mudaram para as moradias precárias atrás do Playcenter, parque fecha- do há cinco anos.
Além de comidas e roupas, as famílias arrecadam pallets para acabarem de construir as moradias na favela. Rosenira conta que está há mais de cinco anos inscrita no programa estadual de habitação, mas não tem ideia de quando vai receber o benefício.
“Nosso barraco fica muito perto do rio [Tietê]. Eu sei que não é bom para as crianças. Espero um dia poder ter uma casa”, diz ela, que nasceu em Mato Grosso e se mudou para São Paulo há mais de 30 anos. Neste período, conta que já perdeu três barracos em incêndios nas favelas. PLACAS Paragarantirasdoações,as famílias instalaram três placas com pedidos de comidas, roupas e brinquedos em cada lado do canteiro. “Não é fácil ficar aqui. Às vezes não aparece nada para comer e temos quesairpedindopelascasas”, diz a dona de casa Fabiana Ribeiro, 24, enquanto segura no colo a filha de dois anos de uma vizinha de barraca.
A mãe da criança, que se identificou apenas como Jaqueline, 25, diz que não dorme no acampamento, apenas visita a mãe, dona de uma das barracas, mas admite que está lá em busca de doações, principalmente de roupas para os dois filhos.
Entre as visitas constantes, está a do dono de uma padaria próxima que leva quase todos os dias as sobras de pães do dia anterior.
Na porta de cada barraca, são deixados baldes para as necessidades, e até um chuveiro improvisado foi montado. Para dar privacidade, um tapete velho faz as vezes de box e uma cadeira é usada para apoiar as crianças na hora do banho. Apesar da rotina improvisada no fim de ano, as crianças não deixam de ir à escola, diz Rosenira. É ela quem prepara o café da manhã e as veste todos os dias antes das aulas.
Uma fogueira funciona como fogão, e qualquer pedaço de madeira serve de combustível, até resquícios do que um dia foi um beliche. “Tenho vontade de fazer bolo para eles, mas não dá.” JABUTI Nos horários de pico, as crianças aproveitam o trânsito parado para vender balas aos motoristas. O dinheiro é rateado entre as famílias para comprar mantimentos, mas o que mais sai das janelas dos carros é comida.
No fim da tarde da última quarta-feira (8), um dos filhos de Rosenira, de 8 anos, se escondeu atrás da barraca para comer um misto quente e tomar uma lata de Guaraná que havia acabado de ganhar de uma motorista.
O lanche provocou disputa entre as outras crianças, que negociaram a ordem de quem ia morder o sanduíche e dar goles no refrigerante.
Algum tempo depois, sua prima, de 12 anos, voltou do meio dos carros da marginal com um pedaço de paçoca embrulhado em um plástico. Mais uma discussão se formou entre eles.
As crianças são orientadas a tomar cuidado com os carrose,paraevitarqueelasbrinquemrenteàcalçada,osadultos improvisaram dois balanços com pneus e cordas que ficampenduradosemárvores.
O cuidado, porém, não evitou que uma delas tivesse, recentemente, o pé machucado após ter sido atingida por uma moto que passava entre os carros, enquanto ela pedia dinheiro no trânsito. “Fiquei desesperado, mas não foi nada grave”, diz o carroceiro.
No acampamento, o casal também toma conta do jabuti de estimação que, ao contrário da gata da família, não pode ficar sozinho no barraco. O bicho fica solto e, de vez em quando, um dos pequenos corre para evitar que vá para o meio da marginal.
“À noite, colocamos ele dentro de uma caixa para evitar que seja atropelado”, diz a líder do acampamento.