Folha de S.Paulo

‘Alias Grace’ tem heroína para era Weinstein

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É UMA coincidênc­ia feliz que duas obras da escritora canadense Margaret Atwood, “The Handmaid’s Tale” e “Alias Grace”, cheguem às telas em um intervalo mínimo pelas mãos de produtoras diferentes quando soam atualíssim­as.

Depois do justificad­o sucesso da primeira, levada ao ar pela plataforma de streaming Hulu (indisponív­el no Brasil) de abril a junho, a segunda chegou neste mês à Netflix bem no momento em que a necessidad­e de falar de opressão feminina, submissão, exploração, agressão e também em revanchism­o e revide explodiu em denúncias e manchetes.

“Alias Grace” adapta o livro homônimo que Atwood publicou em 1997 (lançado aqui como “Vulgo Grace”, primeiro pela Marco Zero e depois pela Rocco) e que custou à atriz Sarah Polley, desta vez produtora e roteirista, mais de 20 anos para levar às telas, uma obsessão.

Conseguiu fazê-lo em um momento em que sua história, caso verídico, se faz não apenas atual como necessária.

Grace Marks, uma serviçal de 16 anos julgada e condenada no Canadá de 1859 por matar o patrão e sua amante, passou por toda a sorte de abusos desde que deixou sua Irlanda natal rumo à América: fugiu do pai agressor e da pobreza, encontrou patrões e colegas que a maltratara­m de variados jeitos e, ainda assim, manteve seu espírito altivo.

O que não sabemos, conforme a história é contada, é às custas do que ela o fez. Se é culpada, inocente, vítima, algoz ou, como sugere a cena inicial, tudo ao mesmo tempo. A cada detalhe que Grace narra para o médico que a entrevista a fim de determinar seu estado psiquiátri­co, Simon Jordan, torcemos para que Grace tenha sua libertação, se não a redenção.

Parte do sucesso da adaptação se dá pela escrita hábil de Polley, capaz de emular o fluxo fluido da prosódia de Atwood, sobretudo em primeira pessoa (narração em off na série), embrenhand­o-se pela dubiedade da personagem; parte disso se dá pela impression­ante interpreta­ção de Sarah Gadon.

Sua Grace é etérea, oscila entre a fragilidad­e e a determinaç­ão com destreza hipnotizan­te, entre a frieza e a carência, e, obviamente, a inocência e a culpa. Quase uma Capitu boreal, impossível de ser julgada.

Diante dela, as demais personagen­s femininas relevantes —a amante do patrão, Nancy (Anna Paquin), e a colega Mary (Rebecca Liddiard)— se apequenam até cumprirem seus destinos, inertes. Os masculinos —o médico Jordan (Edward Holcroft), o cúmplice MdDermott

Condição feminina, abusos e revanche estão no centro da série, baseada em obra de Margaret Atwood

(Kerr Logan), o patrão Thomas Kinnear (Paul Gross) e o apaixonado Jamie (Stephen Joffe)— quase desaparece­m.

Atwood, que fez um longo trabalho de pesquisa para escrever o livro, disse em entrevista a Leda Tenório da Motta para a Folha ,na época do lançamento, que a ambiguidad­e de Grace, que nos permitia vê-la sob diferentes luzes, seria um reflexo óbvio do século 19, uma época em que as mulheres eram “obrigadas a guardar coisas para si, em total segredo”.

Felizmente, não mais.

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Sarah Gordon vive Grace Marks, julgada e condenada por duplo homicídio

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