Folha de S.Paulo

É preciso cantar

- MARCIUS MELHEM COLUNISTAS DA SEMANA: segunda: Gregorio Duvivier, terça: José Simão, quarta: Reinaldo Figueiredo, quinta: José Simão, sexta: Ricardo Araújo Pereira, sábado: José Simão

NO MEIO dessa polarizaçã­o política e do debate acalorado dos últimos anos sinto falta de um componente fundamenta­l: a música.

No século passado a música brasileira esteve presente nas principais questões do país. Na ditadura, por exemplo, as músicas de Chico Buarque, Caetano, Gil e muitos outros, eram denúncia, válvula de escape, grito guardado, mensagem cifrada, tudo ao mesmo tempo.

Na década de 1980, na abertura democrátic­a, Cazuza e Renato Russo colocavam o dedo na ferida com poesia e contundênc­ia. E hoje? Temos Racionais, Rappa, Emicida, Criolo. São artistas geniais, que se posicionam mais no seu lugar de fala (campo da denúncia com propriedad­e), mas que esse monstro invisível chamado “mercado” não deixa ganhar escala mais ampla, tocar nas rádios, ser cantado e decantado por todo o país.

O que se ouve por aí, nos grandes shows, nos programas de TV, nas rádios, faz parecer que o Brasil vive uma grande festa. Cadê a música no debate? Na bela definição de Millôr Fernandes, música é “arte que ataca pelas costas”. Ela te pega sem que você possa olhar para ela e vai direto na alma. Costumo dizer que, como ator, tenho inveja dos cantores, porque ninguém sai de um espetáculo meu repetindo o texto pela rua, mas sai de um show cantando até em casa; e para alguém; e nos dias seguintes.

Talvez falte encontro, discussão. A Bossa Nova, por exemplo, nasceu numa época em que as pessoas tinham que se reunir para fazer música. Tinham que estar juntas no Villarino, no apartament­o da Nara Leão. E aí, como não dava para mandar melodia por e-mail e receber letra por WhatsApp, o que era só música vai virando movimento, troca de ideias e mobilizaçã­o. E do debate surgiu a necessidad­e de subir o morro, e ir atrás de Zé Keti, e assim o movimento foi se renovando. Com a Tropicália também a coisa se deu no terreno do encontro, da troca, do querer expressar algo em conjunto. A presença física, a conversa, era parte de fazer música. E assim tudo ganhava concretude, conceito.

Não sei se essas ideias soltas fazem algum sentido. Sei que sinto falta da música deste tempo, que fale da nossa situação hoje. E nos ajude a sair dela.

Como disse Caetano dias atrás, ao ser proibido de fazer um show num acampament­o de sem-teto: “e, mais do que nunca, é preciso cantar porque há muitas dificuldad­es”.

Como ator, tenho inveja dos cantores, porque ninguém sai de um espetáculo meu repetindo o texto pela rua

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Débora Gonzales

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