REVOLUÇÃO RUSSA, 100 Prédio encarna risco a um legado soviético
Edifício Narkomfin, ícone construtivista que influenciou o modernismo, é um dos mais ameaçados em Moscou
Empreendimentos como shoppings tomam espaço de edificações do período comunista na capital da Rússia
No fim de uma quadra malcuidada, um prédio se espraia com longas linhas retas e grandes janelas. Não estaria fora do lugar na Asa Sul de Brasília, mas se encontra logo atrás da Embaixada dos Estados Unidos na Rússia, ao largo do centro de Moscou.
É o Dom Narkomfin, a Casa do Comissariado do Povo para Finanças, erguido de 1928 a 1932 para abrigar 54 famílias de funcionários daquele braço da burocracia da União Soviética.
O edifício encarna a dificuldade de coexistência entre a Rússia pós-comunista e seu passado socialista, iniciado na revolução que completou cem anos na terça-feira (7) e encerrado em 1991.
O Narkomfin, cujas rachaduras o aproximam de um prédio fantasma, é um dos maiores ícones do construtivismo na arquitetura.
O estilo emergiu do radicalismo da década da revolução e da ascensão do modernismo no Ocidente: os exageros do antigo regime tinham de ser substituídos por linhas puras, funcionais. Cubismo tridimensional e áreas envidraçadas davam as cartas.
O estilo influenciou papas do modernismo, como o francês Le Corbusier e o alemão Walter Gropius, fundador da Bauhaus. Disse este na abertura do primeiro Congresso Internacional de Arquitetura Moderna,em1928:“[Devemos fazer] Casas que não sejam resposta a uma comissão estética, mas a fatos objetivos”.
Até 1936, havia quase mil arquitetosestrangeirosnopaís. As ondas de choque se espalharam mundo afora, como Oscar Niemeyer prova.
O que torna o Narkomfin especial é o fato de que ele radicalizou a formulação ideológica. Os apartamentos são reduzidos, e há grandes áreas comuns com cozinhas, lazer e cuidados infantis.
A lógica era romper a concepção de família burguesa, coletivizando o indivíduo — no processo, emancipando mulheres de tarefas domésticas. Não deu certo, mas como legado arquitetônico é uma peça única e sob risco.
A Sociedade de Proteção do Patrimônio Arquitetônico, criada em 2004 após a demolição de edifícios históricos comunistas, o considera o mais ameaçado da cidade.
Em 2006, um investidor comprou 70% do prédio, buscando fazer dele um hotel e museu. A crise de 2008 matou o projeto, e hoje há ali estúdios de ioga e cafés. Cinco apartamentos têm moradores. A cidadediscuteademoliçãodo prédio (apesar de protegido) para abrigar mais um dos shoppingsqueporlápululam.
O Narkomfin e outros exemplos, como o prédio do jornal “Izvestia” (1927) e a torre de TV Shukhov (1922), dominaram o imaginário arquitetônico do regime até meados dos anos 1930, quando o construtivismo caiu em desuso devido à associação com o radicalismo de Leon Trótksi —exilado e depois morto a mando de Josef Stálin.
O ditador deixou suas marcas na forma do “gótico stalinista” e com os “palácios do povo”, estações de metrô luxuosamente decoradas. Seus sete arranha-céus viraram símbolos. Um deles, na praça Kudrinskaia, fica quase ao lado do Narkomfin, gerando contraste óbvio.
Havia sabedoria política na guinada do ditador. O modernismo servia às classes vanguardistas da revolução, mas nada dizia ao grande país camponês às suas costas e que precisava controlar.
Stálin reciclou temas, tanto que o projeto vencedor do nunca construído Palácio dos Sovietes era de uma jequice neoclássica tão grande que a guilda internacional modernista rompeu com o Kremlin.
O cisma só foi resolvido em 1954, com a reabilitação do construtivismo como parte da desestalinização promovida por Nikita Krushchov. A partir daí, o estilo ganhou força no Ocidente, como no brutalismo dos anos 1960.
Significativamente, o secretário-geral deixou como legado os “Krushchovka”, prédios comunais de linhas simples e construção modular, não radicais como o Narkomfin, mas herdeiros seus.
A tensão entre símbolos de eras não é, claro, exclusividade russa ou de empreendedores gananciosos: são regimes totalitários os que mais buscam acomodar a realidade a seus desígnios. Se o plano de Stálin para Moscou prosperasse, um tesouro medieval e barroco teria sido arrasado.
A história segue. Neste ano, a prefeitura anunciou um enorme projeto de reconstrução urbana, visando derrubar 7.900 “Krushchovka”, afetando 10% da cidade.
Para a demolição ocorrer, 2/3 dos ocupantes de cada bloco têm de aceitá-la, gerando denúncias de ameaças. A polêmica está instalada, em mais um capítulo do embate entre passado e futuro.