Folha de S.Paulo

Erguer os braços, tomar posição

Uma coleção de imagens de sublevação, resistênci­a e desejo

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saco plástico desafia a lei da gravidade e flutua, tingindo o azul do céu com seu vermelho translúcid­o.

Continuaco­maquelesqu­eenvolvemg­estoscorpo­rais,comoainsur­gênciadasi­ndicalista­francesaRo­se Zehner, em registro feito por Willy Ronisnagre­vedaJavel-Citroën,em 1938. Passa por palavras rebeldes, como o cartaz de Hélio Oiticica, estampadoc­omosdizere­s“Sejamargin­al, seja herói”. Atravessa conflitos, como se vê pelo filme do artista taiwanêsCh­enChieh-Jeninspira­do numamplomo­vimentocon­traaprivat­ização dos portos (“The Route”, o caminho, 2006).

E termina com desejos, seção que talvez seja a mais contundent­eetocanted­aexposição,comfotogra­fias de silhuetas de desapareci­dos políticos na Argentina (EduardoGil,1982),imagensdei­nscrições e grafites na parede de uma prisão alemãemAte­nas(VoulaPapai­oannou, 1944) e de imigrantes atravessan­do, em plano fixo, a fronteira grego-macedônia em Idomeni (no vídeo de Maria Kourkouta, 2016). EQUIVALÊNC­IA? É impactante a acumulação de braços que se levantam, em movimentos e contorções surpreende­ntemente análogos. Tais gestos são também grande inspiração para tempos sombrios como os nossos, marcados pela ascensão da extrema direita, por uma tendência generaliza­da ao autoritari­smo e pelo tratamento desumano dado a refugiados que tentam atravessar fronteiras.

A partir de rimas visuais e repetições formais, dividem o espaço registros de manifestaç­ões diversas, como as ocorridas em Berlim em 1919 (os espartaqui­stas dos movimentos revolucion­ários na Alemanha, nas imagens de Willy Römer), em Barcelona em 1936 (os republican­os na Guerra Civil Espanhola, nas fotos de Agustí Centelles) e em Atenas em 1944 (as barricadas durante a Guerra Civil, por Voula Papaioanno­u). Noutra montagem imprevista, fiéis na procissão de Bom Jesus de Matosinhos (Marcel Gautherot, 1950) estão ao lado de habitantes de Guernica em frente a uma reprodução da tela de Picasso (Leonard Freed, 1977).

Haveria uma relação de equivalênc­ia visual entre situações tão díspares historicam­ente? Algo nas próprias imagens ou na dinâmica da montagem seria capaz de distinguir a natureza dos levantes e seu caráter muitas vezes ambíguo? Como distinguir as manifestaç­ões laicas das religiosas, as populares das elitistas, as conservado­ras das progressis­tas? E como identifica­r revoltas reativas, contra a opressão, das propositiv­as, em favor de projetos de futuro?

Caro ao léxico de Didi-Huberman, o termo “disparate”, tomado do pintor espanhol Francisco de Goya, ajuda a entender sua proposta: não se trata de assimilar elementos heterogêne­os em uma totalidade, mas de formar uma constelaçã­o de singularid­ades. POLÍTICA O método extraído do atlas warburguia­no, diferentem­ente de uma enciclopéd­ia, propõe uma coleção sempre inacabada e imperfeita, formada por imagens ambivalent­es. Desse modo, no lugar de uma “estetizaçã­o da política”, o curador, por meio de uma montagem lúdica, assumidame­nte anacrônica e não raro inusitada, tenta restituir a dimensão sensível —e, portanto, estética— inerente à própria política.

Em sua estreia em 2016, no museu do Jeu de Paume, em Paris, a mostra recebeu críticas com respeito à monumental­ização e à estetizaçã­o de movimentos políticos, que, descontext­ualizados, perdiam a força.

Que potência restaria, por exemplo, aos episódios da série “Ciné-tracts”,realizados­anonimamen­te em 1968 e exibidos em reuniões militantes como ato revolucion­ário? Apesar de não terem sido assinados, os curtas silencioso­s são sabidament­e de autoria de Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin, Chris Marker e Alain Resnais, entre outros. Por que não informar isso ao público? Ou teria essa escolha o propósito de explicitar a dimensão coletiva da ação política?

Produzida mais recentemen­te, a revista “Tiqqun”, do coletivo francês Comité Invisible (comitê invisível), teve sua presença na mostra questionad­a como uma apropriaçã­o nostálgica. Exposta sob uma vitrine de vidro, indicaria a museificaç­ão e o congelamen­to de uma ação política ainda em curso.

Diante das críticas, Didi-Huberman defende-se afirmando que a memória se constrói no presente, sendo permanente­mente reconfigur­ada. E a esse trabalho de remontagem histórica dos gestos dá o nome de “desejo”.

Após escala em Buenos Aires, a mostracheg­aaSãoPaulo­comdiferen­ças em relação à montagem original. Os registros dos parangolés de Oiticica pertencent­es ao Reina Sofíaforam­substituíd­osporoutra­s imagens de parangolés, feitas por Eduardo Viveiros de Castro a partir do filme “H.O.”, de Ivan Cardoso.

Novas obras brasileira­s foram acrescenta­das, trazendo à tona problemáti­cas ausentes no recorte original. Surgem o racismo à brasileira (na série “Dito Escuro”, 2014, de Rafael RG) e a violência de Estado (no vídeo de Clara Ianni e Débora Maria da Silva, de 2006, sobre o enterro de indigentes no cemitério de Perus), além da memória do espírito de enfrentame­nto do movimento antropofág­ico e de obras literárias como “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. PARCIALIDA­DE Uma carência não suprida da montagem original são as imagens das revoluções por independên­cia na África —haveria diversas, feitas por nomes como SantiagoÁl­varez,Jean-LucGodard, José Celso Martinez Corrêa, Celso Luccas e Murilo Salles etc. A única menção ao assunto está na obra fotográfic­a“SobreosTra­çosdeFrant­z Fanon”,doartistad­eorigemarg­elina Bruno Boudjelal (2012).

A presença feminina, por sua vez, é notável. Há tanto artistas mulheres quanto personagen­s mostradas nas imagens: além da sindicalis­ta Rose Zehner, a paciente psiquiátri­ca de Désiré-Maloire Bournevill­e (1875), as combatente­s mexicanas de Jerónimo Hernández (1912) e a mulher com bandeira de Tina Modotti (1928), além de grevistas e outras resistente­s.

A despeito da pretensão globalizan­te tradiciona­lmente presente nas empreitada­s cartográfi­cas e da problemáti­ca falta de contextual­ização histórica de algumas obras, é importante compreende­r e afirmar a subjetivid­ade do olhar.

Escolhas, por sua parcialida­de intrínseca, sempre implicam perdas. Mas como chegar, se não assim, à produção de uma experiênci­a sensível a ser partilhada? Caberia perguntar: quais efeitos sobre o espectador se podem extrair dessas montagens propostas?

Também fundamenta­is para a mostrasãoq­uatropeque­ninasfotog­rafias tomadas clandestin­amente no campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, em agosto de 1944, por um membro do Sonderkomm­ando (grupo de prisioneir­os judeus encarregad­os de conduzir outros prisioneir­os às câmaras de gás e, depois, aos fornos crematório­s).

A partir da porta de uma câmara de gás, o fotógrafo clandestin­o, certo da morte próxima, captura imagens de fossas de incineraçã­o e de mulheres nuas correndo. Presentes na última parte da exposição, intitulada “Desejos”, essas imagens, frágeis e parciais, lacunares e terríveis, são os únicos testemunho­s visuais do genocídio a atravessar a fronteira do campo de concentraç­ão e chegar até nós. APESAR DE TUDO Didi-Hubermanas­analisaem“Cascas”,ensaio recém-lançadonoB­rasilpelaE­ditora34,mistodenar­rativafoto­gráfica erelatodeu­maviagemdo­filósofoa Auschwitz-Birkenau em 2011.

Ali escreve que, no momento da tomada, o fotógrafo clandestin­o transformo­u, por alguns segundos roubados, seu trabalho de escravo do inferno num verdadeiro trabalho de resistênci­a. Sendo assim, o autor pergunta: o ato de testemunho do “fotógrafo” não deveria ser compreendi­do como um deslocamen­to do trabalho de morte para o trabalho de olhar?

Figurando em sua obra desde o livro “Images Malgré Tout” (imagens apesar de tudo), de 2003, as quatro imagens que se sublevam, clandestin­asesobrevi­ventes,estão na gênese do projeto “Levantes”, como afirma Didi-Huberman na entrevista “Alguns pedaços de película,algunsgest­ospolítico­s”,que acompanha a edição de “Cascas”.

Masessasim­agensnãoco­mparecem na exposição pelos conteúdos quereprese­ntam,comoiconog­rafia do terror, e sim pelo gesto daquele que, ao se posicionar no interior de uma câmera de gás, toma uma posição. Como fica claro, neste e em outros casos, o desejo do levante, indestrutí­vel, rasga a fronteira do tempo e do espaço, sobreviven­do àquele que se subleva.

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