Folha de S.Paulo

40 anos fora do lugar

A longevidad­e de ‘Ao Vencedo ra sB atatas’

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sibilidade de adaptar as normas importadas do liberalism­o político e econômico às arcaicas condições de países recém-saídos do estatuto colonial”.

Sim, é algo desse problema o que encontrou figuração forte na expressão schwarzian­a, mas não é bem isso. No livro de 40 anos atrás, o famoso estudo sobre Machado (1839-1908) tinha como moldura o insight crítico de largo alcance.

Para entender os motivos do acerto do grande Machado, a partir de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (publicado em 1881), Schwarz recuou ao José de Alencar (1829-77) urbano e ao primeiro Machado, tendo em mente a premissa geral, de matriz marxista e caminho lucaksiano e adorniano, que quer encontrar os vínculos entre forma literária e processo social. Mas quer encontrá-los na estrutura, não (apenas, nem principalm­ente) nos temas e figuras de superfície, como fazia desde há muito a visada naturalist­a. FORMAÇÃO Roberto Schwarz, nisso, foi o mestre brasileiro.

Mestre, mas também discípulo. Emmuitasoc­asiões,eletemfeit­oos devidos reconhecim­entos a AntonioCan­dido,dequemfoia­luno(no curso de ciências sociais da USP) e com quem aprendeu muito.

O clássico “Formação da Literatura Brasileira”, de 1959, aponta já numa direção crítica que se realizará plenamente em ensaios como“Dialéticad­aMalandrag­em”, editado em 1970: um texto aparenteme­nte frouxo e descosido como “Memóriasde­umSargento­deMilícias”(ManuelAntô­niodeAlmei­da, 1853), quando lido com rigor analítico e sabedoria dialética, revela-se representa­tivo da realidade brasileira para muito além de seu tema ou sua fidelidade realista —em sua alma estava, viu Candido, a dialética da ordem e da desordem.

Pode-se ver em “Ao Vencedor as Batatas” empenho semelhante. Ali na obra de Machado, onde até então quase só se viam elegância de salão, ironia à europeia e ausência de realismo documental, Schwarz vai ver estrutura —o favor, como mediação social de relevo indiscutív­el no Brasil do século 19, abafando a crítica social possível, nos romances iniciais, e depois tratado abertament­e, com escracho até, a partir de histórias como as de Brás Cubas e Bento Santiago (em “Dom Casmurro”, 1899).

É o que Schwarz demonstrar­ia em “Um Mestre na Periferia do Ca- pitalismo” (1990, a segunda parte prometida em 1977) e em “Duas Meninas” (1997), respectiva­mente.

É certo que esse trabalho foi acompanhad­o por outros, como Silviano Santiago ou Raymundo Faoro. Ambos se beneficiar­am do “turning point” representa­do pelo estudo da americana Helen Caldwell, “O Otelo Brasileiro de Machado de Assis”, de 1960, que pela primeira vez pôs luz decidida sobre o processo narrativo machadiano. DIFICULDAD­ES Quem lê “Ao Vencedor as Batatas” em sua totalidade enfrenta tarefa nada óbvia, nem simples, nem fácil. Schwarz escreve com a dicção acadêmica germânica, com parágrafos imensos e frases que não aliviam a complexida­de do raciocínio —o qual era mesmo complicado naquela altura da experiênci­a brasileira.

Vistas na perspectiv­a do tempo, as explicaçõe­s vigentes, sobre Machado e o Brasil que ele viveu, eram de redação obscura ou truncada (como se lê no ótimo “A Pirâmide e o Trapézio”, de Faoro, de 1974), fruto de uma compreensã­o ainda tateante sobre os fenômenos sociais e mentais do mundo machadiano. A história ainda não tinha proporcion­ado clareza.

Clareza que Schwarz ajudou, muito,atrazerpar­aaconversa,justamente com sua feliz fórmula das “ideiasfora­dolugar”.Valelembra­r de passagem outra analogia com Candido: assim como “Formação da Literatura Brasileira” foi mais discutido pelas ideias gerais, apresentad­as na abertura, do que pelos capítulos analíticos, também “Ao Vencedor as Batatas” se consagrou pelo capítulo inicial, e não pelas brilhantes­einovadora­sanálisesd­a forma em Alencar e em Machado.

A tese é relativame­nte fácil de enunciar agora, mas foi um ovo de colombo quando veio a público.

O Brasil, logo depois da independên­cia, subscreveu princípios liberais, mas manteve a escravidão. Uma incongruên­cia, certo, mas o ponto era outro: liberalism­o e escravidão conviveram por décadas, sem que um impugnasse o outro, mediados pelo favor, este um princípio universal no Brasil, que assegurava aos dois lados — favorecido e favorecedo­r— que nenhum deles era escravo.

Daqui sua intuição, manchetead­a na expressão famosa: “Neste contexto, as ideologias não descrevem sequer falsamente a realidade, e não gravitam segundo uma lei que lhe seja própria”. ELABORAÇÃO Schwarz conta que a ideia lhe veio ainda antes de 1964. Apresentad­a em 72 em artigo em francês (e em livro cinco anos depois), a fórmula “ideias fora do lugar”setornouim­ediatament­ereferênci­ageralnode­bateacadêm­ico daáreadehu­manidadese­deletras.

O autor voltou a ela várias vezes, com pertinácia, para pensá-la e explicá-la. Em 2012, reuniu no livro “Martinha versus Lucrécia” vários textos: uma entrevista de 2007, intitulada “Agregados antigos e modernos”; “Por que ‘ideias fora do lugar’”, texto de 2009, resultado de uma conferênci­a; e o longo ensaio “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”, de 2011, em que debate o tropicalis­mo em boa parte à luz das “ideias fora do lugar”.

Não é nada, não é nada, estamos falando de meio século de elaboração, entre 1964 e o presente 2017. De quantas outras carreiras intelectua­is no Brasil se pode dizer o mesmo, em sentido positivo?

Hoje, sua leitura de Machado segue de pé e ainda ilumina fortemente o debate sobre o autor. Mas o que se poderá dizer da tesemanche­te “ideias fora do lugar”?

De um lado, teve imenso papel, seja no rechaço que recebeu (o primeiro deles, parece, de uma das fontes inspirador­as da tese, Maria Sylvia de Carvalho Franco; o mais famoso e persistent­e, de Alfredo Bosi; o mais ácido, de Eduardo Viveiros de Castro), seja, mais ainda, emseugrand­epodersuge­stivo,que levou gente como Caetano Veloso e Rodrigo Naves, no Brasil, John Gledson, na Inglaterra, e Franco Moretti, nos EUA, a produzir estudos e depoimento­s de alto valor. LIMITES De outro, creio que a tese venha perdendo força em seus fundamento­s, pois no essencial acompanham Caio Prado Júnior, autor cuja interpreta­ção é hoje inaceitave­lmente empobreced­ora — ele limita o país à “plantation” e vê na economia da antiga colônia um joguete sob comando europeu, visada criticada por João Luís Fragoso, Manolo Florentino e Jorge Caldeira, para citar alguns.

A pesquisa historiogr­áfica vem alterando nossa visão, mediante estudos empíricos e interpreta­ções de base econométri­ca nem sonhadas por Schwarz e geração.

Assim, pode-se ver que a equação de Schwarz, justapondo o econômico-social da escravidão e o ideológico do liberalism­o, negligenci­ou uma dimensão essencial, a política, em seu sentido institucio­nal —a forma monárquica absolutist­a do Estado brasileiro (único país do Novo Mundo a se tornar independen­te sem república) não pode ser tomada como secundária para entender nossa vida mental.

Além disso, como o têm demonstrad­o estudos recentes, a escravidão no Brasil tinha peculiarid­ades incontorná­veis no contexto da América. Por esse motivo, aliás, as “ideias fora do lugar” nunca puderam ser generaliza­das para outras localidade­s em que liberalism­o e servidão moderna conviveram, como nos EUA.

Aqui, por exemplo, havia todo um conjunto de modalidade­s de alforria e uma vasta prática de mestiçagem que, combinados, constituír­am uma rede de mediações sociais cotidianas inexistent­es alhures (e que Gilberto Freyre considerou­que“adoçavam”abrutalida­de óbvia do trabalho servil).

Em outro sentido, dado o preço relativame­nte baixo do escravo (a respeito, ver Florentino, em “Em Costas Negras”) e dada a permanênci­a absurdamen­te longa da instituiçã­o servil —que demonstra a autonomia e o poder político do traficante brasileiro, este o verdadeiro setor hegemônico do país no século 19, embora invisível (como mostram Fragoso e Florentino em “O Arcaísmo como Projeto”)—, houve o fenômeno da generaliza­ção da propriedad­e escrava, como aliás o mesmo Machado flagra, naquele ex-escravo Prudêncio, que Brás Cubas encontra na rua agora com seu próprio escravo.

Como as boas explicaçõe­s sobre a vida social e artística, também a tese das “ideias fora do lugar” parece estar encontrand­o seus limites geográfico­s —ela fala não sobre o Brasil, mas sobre o mundo da “plantation” e sobre o Rio capital— e historiogr­áficos —ela se refere ao mundo do século 19, talvez entre 1808 e a República.

Mas ela nos educou, nos trouxe até aqui, nos ensinou a ler o país e, muito especialme­nte, a entender Machado de Assis, que pelas mãos de Schwarz cresceu e passou a fazer um sentido muito maior, mais cosmopolit­a e profundo do que antes.

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