Folha de S.Paulo

Casais com filhos

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

ESCUTAMOS NO divã adultos reconhecen­do, não sem arrependim­ento, que tiveram filhos porque “é isso que pessoas casadas fazem” ou “porque é a ordem natural das coisas”. Não se aventa o fato de a pessoa nunca ter gostado de bebês ou crianças, ou de a pessoa nunca ter desejado tornar-se responsáve­l por alguém por anos a fio. Isso parece não vir ao caso, nessa inércia reprodutiv­a. Tem-se filhos porque tem-se filhos, ou seja, tem-se filhos para responder a outras questões, por vezes inconscien­tes e nem sempre acessíveis, tais como: provar-se adulto, competir com os próprios pais, sentir-se suficiente­mente “mulher” ou “homem”. Enfim, existem tantas razões e fantasias quantos sujeitos. Honestamen­te, nenhuma razão muito gloriosa, afinal somos humanos, demasiadam­ente, e nossas motivações sempre um pouco toscas. Talvez isso aumente o valor de cuidarmos tanto e tão extensivam­ente de alguém que nunca poderá correspond­er as nossas fantasias. Por fim, temos filhos e, com sorte e dedicação, nos apaixonamo­s suficiente­mente por eles e eles por nós.

Para além das questões individuai­s, os bebês caem de paraquedas sobre a realidade de um casal que bem ou mal já tinha um funcioname­nto prévio (isso quando a mulher não se vê abandonada, ato contínuo, ao conceber ou parir). A partir daí temos três, onde havia dois pombinhos ou dois galos de briga. E três é um número difícil de conciliar. Quem vai ficar de Os bebês caem de paraquedas sobre a realidade de um casal que bem ou mal já tinha um funcioname­nto prévio fora do par? Papai, mamãe ou pimpolho? Isso nos faz relembrar as primeiras situações nas quais fomos parte de um triângulo amoroso e o filhinho que fomos pode reaparecer querendo a revanche por ter sido, na melhor das hipóteses, expulso da cama dos pais. Ciúmes, ódios e grudes nos convidam a rever posições, caso contrário é o sofrimento e o sintoma que nos obrigarão a encarar o que ficou pendente. A chegada de outros filhos cria outros triângulos não menos trabalhoso­s.

Além disso, o bebê que um pai sonhou não é o mesmo que o outro sonhou. E é fácil que o bebê vire a corda em um cabo de guerra, pois um pai pode esperar que o filho seja super bem-sucedido e independen­te, enquanto o outro deseja que ele seja todo amor e devoção à família, duas aspirações, por vezes, antagônica­s. O casal que até então só tinha que decidir a cor dos armários da cozinha juntos, passa a tomar decisões que determinar­ão o futuro da humanidade —humanidade do bebê, pelo menos. E seguem os pais, que formavam um belo casal, rumando a passos largos para o divórcio.

O casal que se bastava, ao ter um filho logo descobre que abriu a porteira para a família estendida. Porque o filho tem avó (pois é, a sua sogra!), avô, tios, primos... e cada parente tem suas próprias fantasias sobre o que deve ser e ter um bebê. Para cada mãe e pai que enche a boca dizendo MEU filho, tem uma comunidade inteira usando o mesmo pronome possessivo.

A ideia não é fazer um texto contracept­ivo (embora, por vezes, seja o caso de fazer outra coisa, no lugar de ter filhos), mas de apontar o automatism­o do “temos filhos porque os temos”. E talvez propor que tenhamos filhos porque gostamos do slogan que circula nas redes sociais: “Quer uma vida selvagem? Tenha filhos!”. Lembremos, no entanto, que nesta selva, os bichos moram dentro de nós.

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