Casais com filhos
ESCUTAMOS NO divã adultos reconhecendo, não sem arrependimento, que tiveram filhos porque “é isso que pessoas casadas fazem” ou “porque é a ordem natural das coisas”. Não se aventa o fato de a pessoa nunca ter gostado de bebês ou crianças, ou de a pessoa nunca ter desejado tornar-se responsável por alguém por anos a fio. Isso parece não vir ao caso, nessa inércia reprodutiva. Tem-se filhos porque tem-se filhos, ou seja, tem-se filhos para responder a outras questões, por vezes inconscientes e nem sempre acessíveis, tais como: provar-se adulto, competir com os próprios pais, sentir-se suficientemente “mulher” ou “homem”. Enfim, existem tantas razões e fantasias quantos sujeitos. Honestamente, nenhuma razão muito gloriosa, afinal somos humanos, demasiadamente, e nossas motivações sempre um pouco toscas. Talvez isso aumente o valor de cuidarmos tanto e tão extensivamente de alguém que nunca poderá corresponder as nossas fantasias. Por fim, temos filhos e, com sorte e dedicação, nos apaixonamos suficientemente por eles e eles por nós.
Para além das questões individuais, os bebês caem de paraquedas sobre a realidade de um casal que bem ou mal já tinha um funcionamento prévio (isso quando a mulher não se vê abandonada, ato contínuo, ao conceber ou parir). A partir daí temos três, onde havia dois pombinhos ou dois galos de briga. E três é um número difícil de conciliar. Quem vai ficar de Os bebês caem de paraquedas sobre a realidade de um casal que bem ou mal já tinha um funcionamento prévio fora do par? Papai, mamãe ou pimpolho? Isso nos faz relembrar as primeiras situações nas quais fomos parte de um triângulo amoroso e o filhinho que fomos pode reaparecer querendo a revanche por ter sido, na melhor das hipóteses, expulso da cama dos pais. Ciúmes, ódios e grudes nos convidam a rever posições, caso contrário é o sofrimento e o sintoma que nos obrigarão a encarar o que ficou pendente. A chegada de outros filhos cria outros triângulos não menos trabalhosos.
Além disso, o bebê que um pai sonhou não é o mesmo que o outro sonhou. E é fácil que o bebê vire a corda em um cabo de guerra, pois um pai pode esperar que o filho seja super bem-sucedido e independente, enquanto o outro deseja que ele seja todo amor e devoção à família, duas aspirações, por vezes, antagônicas. O casal que até então só tinha que decidir a cor dos armários da cozinha juntos, passa a tomar decisões que determinarão o futuro da humanidade —humanidade do bebê, pelo menos. E seguem os pais, que formavam um belo casal, rumando a passos largos para o divórcio.
O casal que se bastava, ao ter um filho logo descobre que abriu a porteira para a família estendida. Porque o filho tem avó (pois é, a sua sogra!), avô, tios, primos... e cada parente tem suas próprias fantasias sobre o que deve ser e ter um bebê. Para cada mãe e pai que enche a boca dizendo MEU filho, tem uma comunidade inteira usando o mesmo pronome possessivo.
A ideia não é fazer um texto contraceptivo (embora, por vezes, seja o caso de fazer outra coisa, no lugar de ter filhos), mas de apontar o automatismo do “temos filhos porque os temos”. E talvez propor que tenhamos filhos porque gostamos do slogan que circula nas redes sociais: “Quer uma vida selvagem? Tenha filhos!”. Lembremos, no entanto, que nesta selva, os bichos moram dentro de nós.