Ao encontro da tradição platina, conversa conduz trama silenciosa
FOLHA
A chegada de um forasteiro ou o retorno do traído são temas essenciais do western cinematográfico, relidos de forma magistral por Hernán Ronsino em “Glaxo”.
Paralelos estabelecidos entre a épica norte-americana e a gauchesca não são novidade; mesmo assim a novela adiciona algo de novo, habilmente confeccionado para inseri-la na tradição argentina que explora a conversação como forma narrativa ambientada na zona interiorana.
Construída por quatro narradores cujos relatos abarcam 25 anos, de 1959 a 1984 (a ordem não é cronológica), a trama de Ronsino tem o vilarejo como espécie de panóptico onde quase tudo se vê, pouco se fala e nada se sabe.
A barbearia do primeiro narrador funciona como guarita: de suas amplas janelas ele vê as dependências da fábrica Glaxo, a fauna proletária no bar e operários que desmancham a linha férrea.
Repleta de silêncios, “Glaxo” vai soltando seus mistérios em lentas e obscuras fumaradas de chaminé, à medida que evolui a ciranda de narradores: Bicho Souza, Miguelito Barrios e Folcada, suboficial corrupto da delegacia local. Aqui, entre os saltos elípticos das décadas, atenção e intuição do leitor são indispensáveis.
No policial Folcada se encontra o vetor de “Glaxo”: casado com a Negra Miranda, é traído e simultaneamente traidor, enquanto delações e suspeitas empurram sua participação na história, iniciada desde a epígrafe retirada de “Operação Massacre”, a reportagem seminal de Rodolfo Walsh (1927-1977).
A metonímia consiste em dispor “Glaxo” na linhagem política representada por Walsh através dessa citação, que se refere aos fuzilamentos ocorridos na ditadura de 1956, e a partir das referências microscópicas simbolizadas pelas traições e crimes no vilarejo, reproduzir a tessitura social mais ampla de todo um país marcado pela corrupção.
Nisto, extrai a originalidade de uma série de matrizes temáticas da ficção argentina, da amizade em Juan José Saer à presença do campo na obra de Haroldo Conti; da delação em Roberto Arlt e Piglia ao despautério do poder em “Duelo de Titãs” (1959), filme de John Sturges que serve de estopim à novela. E, ao trair tais fontes, lhes é fiel.