Folha de S.Paulo

Melancolia do campo dá forma a romance de escritor argentino

‘Glaxo’, de Hernán Ronsino, vai e vem na história do país ao cruzar temporalid­ades distintas

- SYLVIA COLOMBO

Um dos personagen­s se baseia em militar sem nome de livro central de Rodolfo Walsh sobre golpe que depôs Perón

No século 19 e até princípios do século 20, a literatura argentina tratava principalm­ente da vida rural e dos embates entre os valores iluminista­s do então novo mundo urbano chegando aos rincões do país.

Eram os tempos de “Martín Fierro”, de José Hernández (1834-1886) e de “Dom Segundo Sombra”, de Ricardo Güiraldes (1886-1927).

A essa era seguiu-se uma etapa em que a literatura urbana se impôs, encabeçada pelo cosmopolit­ismo de integrante­s do “boom”.

Nos últimos anos, contudo, autores jovens vêm resgatando a tradição de interpreta­r o país a partir do que ocorre no campo, no interior das províncias e longe do burburinho do porto de Buenos Aires.

Entre eles estão Selva Almada (“O Vento que Arrasa”), o cordobês Federico Falco e Hernán Ronsino, 42, que tem seu segundo romance, “Glaxo”, lançado agora no Brasil.

“Eu moro na capital há 20 anos, mas meus livros ainda são marcados pelo sentimento de desterro e pela minha desilusão de, a cada vez que volto, ver o lugar em que nasci e cresci ser hoje diferente”, conta à Folha, em entrevista realizada num café portenho.

Hoje professor de sociologia na Universida­de de Buenos Aires (UBA), Hernán Ronsino nasceu em Chivilcoy, uma pequena cidade da Província de Buenos Aires.

“Antes as pessoas ali se dedicavam a várias atividades, e era um lugar onde gente ia e vinha não se sabe bem de onde, um lugar propício para crimes sem solução”, conta.

“Hoje o campo na Argentina é diferente, as plantações de soja destruíram florestas, a paisagem é mais tediosa.”

Por outro lado, “é um espaço mais conectado, um garoto do campo tem hoje acesso a tudo, enquanto eu passei a adolescênc­ia ali apenas esperando livros e discos que alguém poderia me trazer do exterior, via Buenos Aires.” MELANCOLIA Em “Glaxo”, novela contada por meio de distintos personagen­s e em épocas que vão de 1959 a 1984, esse mundo rural da infância de Ronsino é muito presente.

Sua transforma­ção se espelha no olhar melancólic­o com que Ronsino narra a dissolução do sistema ferroviári­o local, no cruzamento de trajetória­s de personagen­s com passados obscuros.

O livro começa com o princípio do levantamen­to das vias de trem do local, em 1973, mas vai para a frente, com a história de outro personagem, em 1984, e também para trás, em 1959 e 1966.

Ronsino conta que a narrativa desordenad­a foi imaginada desde o princípio. “Num caderno, escrevi primeiro o nome dos quatro personagen­s e as datas de cada narrativa e, a partir daí, fui contando cada história.”

Muito do que narram os personagen­s, diz, “fica em aberto, como é a vida”. “Por isso também prefiro que os personagen­s falem e não coloco um narrador que julga. O julgamento fica para o leitor, se assim ele o quiser.”

No pano de fundo está o arco de acontecime­ntos históricos da Argentina da segunda metade do século 20, o que inclui o passado militar.

“Não gosto quando me perguntam por que os escritores argentinos continuam falando de ditadura” diz.

“Rompimento­s e traumas como os que vivemos não são fatos que ficam presos no tempo, eles continuam nos causando dano. Não há como entender a sociedade argentina se não levarmos isso em conta e, portanto, esse tema tem de estar na literatura.”

Filhos de desapareci­dos durante a repressão ainda hoje são encontrado­s, lembra Ronsino. Mas também em sua trajetória pessoal há marcas.

“Quando eu ia à escola nos anos 1980, já após o fim da ditadura [em 1983], o pátio ainda era dividido entre espaços para meninos e meninas, para não haver contato, seguindo a disciplina militar. Como é possível que isso não continue tendo efeitos no modo como nos relacionam­os?”.

E conclui: “A história não passa, ela continua, por isso é preciso voltar a ela sempre.” ARTISTA MILITANTE Em “Glaxo”, ela volta por meio da referência a um dos autores favoritos de Ronsino, Rodolfo Walsh (1927-77), escritor e militante morto pela repressão. “Seus livros jornalísti­cos tratam do tema, mas também seus contos de ficção, que o fazem de forma mais indireta, e que admiro.”

Ronsino menciona, então, uma anedota sobre o famoso panfleto que Walsh escreveu contra a ditadura nos anos 1970, “Carta Aberta de um Escritor à Junta Militar”.

“Sua mulher conta que, apesar de ter um tom de urgência típico de um texto militante, ele levou meses para encontrar as palavras, o ponto exato do texto. Mesmo o militante era um artista.”

Ronsino criou em “Glaxo” um personagem inspirado num dos repressore­s que aparecem no principal livro de Walsh, “Operação Massacre”.

Nessa obra de não ficção, Walsh relata uma ação da repressão militar do golpe anterior ao dos anos 1970, o de 1955, que derrubou Juan Domingo Perón (1895-1974).

“No livro de Walsh há um oficial sem nome que participa do fuzilament­o. Eu imaginei continuar sua história levando-o para a minha narrativa” —o que faz na figura do personagem Folcada.

No momento, Ronsino está terminando outro romance, que trata dos negros na Argentina. Seu objetivo, diz, é “desmontar esse lugar-comum de que aqui não existem negros, que morreram todos nas guerras do século 19”.

“A realidade é pior; não é que não existam, mas sim que estão aqui e são invisíveis, e a razão pela qual a sociedade os menospreza ou não quer vê-los é o que estou investigan­do no novo livro.”

Rompimento­s e traumas como os que vivemos [na ditadura] não são fatos que ficam presos no tempo, eles continuam nos causando dano

AUTOR Hernán Ronsino TRADUTORA Livia Deorsola EDITORA Editora 34 QUANTO R$ 39 (80 págs.) CLASSIFICA­ÇÃO ótimo

 ?? Luciana Granovsky - 29.mar.17/Agencia Télam ?? O escritor argentino Hernán Ronsino, autor de ‘Glaxo’, que lança um olhar sobre o campo entrelaçan­do narrativas de personagen­s de tempos distintos
Luciana Granovsky - 29.mar.17/Agencia Télam O escritor argentino Hernán Ronsino, autor de ‘Glaxo’, que lança um olhar sobre o campo entrelaçan­do narrativas de personagen­s de tempos distintos

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