Folha de S.Paulo

A metamorfos­e de Bolsonaro

- LAURA CARVALHO COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Benjamin Steinbruch; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Pedro Luiz Passos; sábado: Ronaldo Caiado;

SOBRE O suposto apoio do “mercado” a Jair Bolsonaro, Clóvis Rossi não se surpreende­u: “Afinal, lembrou, agentes de mercado financiara­m, durante a ditadura, a Operação Bandeirant­es, embrião do que viria a ser o tenebroso DOI-Codi, centro de torturas e demais violências aos direitos humanos”.

No entanto, Rossi enxerga alguma contradiçã­o na participaç­ão de agentes de mercado “favoráveis à livre iniciativa” em “regimes liberticid­as, como foi a ditadura do período 1964/85”. Ainda que haja coerência histórica na associação de “liberais” com regimes autoritári­os, o jornalista parece considerar que há uma incoerênci­a de princípios.

Quando se entende o liberalism­o econômico no sentido clássico, como em Adam Smith, talvez haja mesmo contradiçã­o. Smith foi um defensor do livre mercado não apenas pelos seus efeitos sobre a eficiência econômica mas também porque considerav­a que a livre concorrênc­ia era o melhor caminho para a justiça distributi­va e o bem-estar da sociedade.

Quando Smith diz na “Riqueza das Nações” que “pessoas do mesmo comércio raramente se encontram, mesmo que para se divertir ou se distrair, mas as conversas acabam em uma conspiraçã­o contra o público, ou em alguma invenção para aumentar os preços”, é possível enxergar esse tipo de preocupaçã­o. Muitos interpreta­ram o trecho como autorizand­o a regulação de mercados para a defesa da concorrênc­ia.

Sendo assim, a ditadura militar brasileira parece ser mesmo a antítese do liberalism­o clássico, não só pelo seu alto grau de intervençã­o na economia mas porque concentrou o poder econômico na mão de poucos.

Mas não é esse o tipo de liberalism­o econômico promovido nos dias atuais. A alta concentraç­ão do setor bancário brasileiro na mão de alguns atores econômicos, por exemplo, embora seja considerad­a uma das causas para as altas taxas de juros cobradas no mercado de crédito, não parece fazer parte da agenda de reformas estruturai­s proposta pelos tais agentes do mercado.

Quando se entende o liberalism­o econômico como a agenda que inclui essencialm­ente a desregulaç­ão dos mercados financeiro­s mundiais, as privatizaç­ões e a redução do papel do Estado na provisão de serviços públicos e redistribu­ição de renda —que ficou conhecida no século 20 como agenda neoliberal—, as contradiçõ­es ficam menos evidentes.

Embora, em tese, tal agenda proteja a igualdade de oportunida­des por meio da livre iniciativa, o resultado dessas experiênci­as tem sido o de ampliar ainda mais as desigualda­des, como mostra, por exemplo, o artigo de economista­s do FMI intitulado “Neoliberal­ism: Oversold”, de junho de 2016.

Quando as estruturas de poder já são altamente concentrad­as, o livre mercado apenas reforça o status quo, impedindo que o conjunto da sociedade seja beneficiad­o pela geração de riqueza. O neoliberal­ismo atuaria, portanto, como uma forma alternativ­a de repressão das demandas democrátic­as, tornando desnecessá­rio o uso do autoritari­smo para o mesmo fim.

Diante de seus efeitos nefastos para a maioria da população, muitos têm atribuído à agenda promovida pelo “mercado” a culpa pela emergência de movimentos de extrema direita “antissiste­ma” ao redor do mundo.

Nesse sentido, a suposta simpatia do “mercado” pelo autoritari­smo é muito menos surpreende­nte do que a tentativa de Bolsonaro de tornarse um candidato do sistema, que daria continuida­de à política econômica de Michel Temer. A julgar pela impopulari­dade dessa agenda, pode ser um tiro no pé de uma candidatur­a que já tem feito tanto mal ao país. LAURA CARVALHO,

A tentativa de Bolsonaro de ser do sistema pode ser um tiro no pé na candidatur­a que tanto mal faz ao país

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