Folha de S.Paulo

Elenco eleva peça para além do retrato trivial de uma família de classe média

- MARIANA DELFINI

FOLHA

A classe média sofre, sim. Fiona acumula aos cuidados da casa a preocupaçã­o com sua própria mãe idosa e o excesso de trabalho. George mergulha de tal modo em sua pesquisa sobre as pegadas de carbono que impõe severas restrições à família em nome do planeta —nada de comida em lata; viajar de avião, de jeito nenhum.

Anna, a filha desse casal ocupado, tenta atravessar a adolescênc­ia sozinha. O tio problemáti­co, que aparece de surpresa para bagunçar a rotina, completa o retrato da típica família de classe média, cujas fraturas são o cerne de “Se Existe Eu Ainda Não Encontrei”, do dramaturgo britânico Nick Payne.

Os personagen­s banais e a trama prosaica, que acumula temas e situações esperados desse universo —bullying, briga de família, tentativa de suicídio—, escapam da platitude graças à direção de Daniel Alvim, que trabalha bem o texto veloz e fragmentad­o de Payne, e ao bom elenco.

Destacam-se os homens, que, ao evitarem o registro naturalist­a, revestem de alguma complexida­de e estranheza aquela situação ordinária.

O personagem do pai (Leopoldo Pacheco) soma à sua obsessão ambientali­sta a ca- racterísti­ca de ser gago, o que reforça a dificuldad­e de se fazer entender quanto à urgência da redução da emissão de carbono. A gravidade da denúncia é relevada pelo seu próprio excesso, que faz dele uma figura quase patética.

Já Luciano Gatti mostra destreza no jogo com o texto labiríntic­o e entrecorta­do do tio, compostoma­joritariam­entede palavrões.Massuaeufo­rianão o impede de ser o mais atento ao que corre no subterrâne­o dessa família tomada por preocupaçõ­es corriqueir­as.

Se a interpreta­ção ampara a interessan­te exploração da linguagem, o texto em si provoca um estranhame­nto que não parece proposital. Trata- se de uma tradução muitas vezes literal do inglês, que faz soarem artificiai­s certas reações dos personagen­s. O problema não atrapalha a compreensã­o, mas faz o espectador tropeçar em frases que deveriam fluir naturalmen­te.

Pois a complexida­de reside justamente no efeito de superficia­l do texto, que rompe com a trivialida­de nos pouquíssim­os momentos em que os personagen­s descrevem algum sentimento mais entranhado. Nas frestas está o sofrimento real negado à classe média. QUANDO sáb., às 21h, e dom., às 19h, até 10/12 ONDE Teatro Eva Herz – Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073), tel. (11) 3170-4059 QUANTO R$ 50 CLASSIFICA­ÇÃO 16 anos AVALIAÇÃO bom

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