O tico-tico dos advogados
POR QUE Rui Barbosa (1849-1923) e não Luiz Gama (1830-1882) é o patrono dos advogados do Brasil?
Em qualquer país do mundo, Luiz Gama seria a figura festejada. Faz parte da história —nesta sexta (1º) mesmo seria inaugurada sala de aula com seu nome na Faculdade de Direito da USP, mais uma das homenagens invariavelmente tardias—, mas a cor da pele e o radicalismo político marginalizaram sua memória.
Enquanto Rui Barbosa simboliza a perfeição intelectual, pelo menos na ambientação provinciana e beletrista da República Velha (diplomata, jurista, político, orador), Luiz Gama é o preto que, sem cerimônia, invade o território dos brancos.
Sua vida é um roteiro quase pronto de folhetim. A mãe, Luiza Mahin, africana livre e “pagã”, teria desaparecido depois de se envolver em motins políticos importantes como Revolta dos Malês e Sabinada. Seu pai, branco e oriundo de uma das principais famílias baianas, precisando de dinheiro, venderia o garoto de dez anos como escravo.
É levado de Salvador para o Rio de Janeiro e sobe a pé a serra para São Paulo. Consegue se libertar comprovando a ilegalidade do seu cativeiro. Foi sapateiro, soldado, tipógrafo e jornalista.
Publica livro de poesia (“Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”, 1859), coisa de branco, e não importa se os versos são bons ou maus: “Sei que é louco e é pateta quem se mete a ser poeta”.
Autodidata, fundador dos jornais “Diabo Coxo” e “Cabrião”, Em qualquer lugar, Luiz Gama seria figura festejada, mas a cor da pele e o radicalismo político o marginalizaram seria rábula de grande sucesso e popularidade.
Luiz Gama foi hostilizado por alunos e professores da faculdade de direito que frequentaria como ouvinte. Mas a maior adversidade deste enfrentamento judicial e heroico, por certo, seria a representação de gente que tinha o estatuto de coisa (res) perante a burocracia imperial.
Décadas antes de o habeas corpus ser incorporado como garantia individual ao texto da Constituição de 1891 (e a atuação posterior de Rui Barbosa seria decisiva para a consolidação de sua doutrina em memoráveis julgamentos do Supremo Tribunal Federal), Luiz Gama manejava com talento e perícia esse instrumento processual, em busca de nulidades e brechas, para alcançar a libertação de mais de 500 escravos.
Apesar da diferença de idade, seus caminhos se cruzaram. Rui (aos 20 anos) e Gama (com quase 40) estão entre os criadores do “Radical Paulistano”. Rui Barbosa, assim como outros rapazes de boa origem, empresta sua nobreza à causa abolicionista e republicana. Luiz Gama se move pela necessidade de destruir o escravismo. Erudito, Rui foi coberto por títulos e medalhas. Gama, satírico, estava à margem de diplomas e academias.
Se Rui Barbosa foi responsável como ministro da Fazenda do primeiro governo republicano pela queima dos documentos fiscais da escravidão, a pretexto de dificultar futura indenização de fazendeiros atingidos pela Lei Áurea, um marco na constrangedora história do peleguismo brasileiro, Luiz Gama seria incendiário no recinto dos tribunais ao sustentar como direito natural e legítima defesa o homicídio do senhor.
Em “Quem Sou Eu?” Luiz Gama anuncia: “Amo o pobre, deixo o rico, vivo como o tico-tico”. Em tempos de dinheirismo, sua luminosidade austera é um parâmetro encantador e profícuo para advogados. Nada contra Rui Barbosa. lfcarvalhofilho@uol.com.br