O NOVO E OS NOVOS LOOKS
Enquanto mostra em Paris se volta para os métodos de criação de Dior, exposição em Nova York inquire sobre papel da moda na sociedade, contrastando peças de estilistas e itens banais
ENVIADO ESPECIAL A PARIS
“Você não terá dinheiro, mas as mulheres serão boas com você e, graças a elas, terá sucesso.”
Christian Dior (1905-1957) tinha 14 anos quando visitou a leitora de mãos que profetizou seu futuro. A previsão ainda dura após 70 anos da abertura da grife que leva seu nome e é validada nas filas gigantescas do público, majoritariamente feminino, aglomerado em frente ao Museu de Artes Decorativas, em Paris.
Histórias como essa estão na maior mostra sobre o legado do estilista que, finda a Segunda Guerra, devolveu feminilidade à moda com o “new look” —ombros delicados, busto proeminente e curvas acentuadas por saia mídi.
“Christian Dior, Designer de Sonhos”, em cartaz até 7 de janeiro, é, antes de um compilado extenso de peças, uma exposição comprometida com as nuances do processo criativo da moda e a explicar de que forma as experiências de vida influenciam essa criação.
O fascínio do jovem Dior pela arquitetura e pela arte está expressa no cuidado com a confecção, nos cálculos precisos de uma simples camisa branca e na harmonia de proporções dos seus vestidos, tudo contado nas vitrines construídas do chão ao teto. ARTES VISUAIS Na mostra, que ocupa dois andares do edifício, estão também raridades dos arquivos da marca, além de obras de artistas plásticos amigos do estilista, como Salvador Dalí (1904-1989) e Alberto Giacometti (1901-1966). São nomes que Dior ajudou a divulgar até sua galeria de arte ter de ser fechada, no pós-crise de 1929.
As artes visuais, o espectador logo entende, são indissociáveis em sua análise sobre o corpo. Não é por acaso que todos os estilistas que passaram pela marca após a morte repentina do “couturier”, acometido por um ataque cardíaco, em 1957, explorem quadros e esculturas como ponto de partida para coleções.
É nesse ponto que o espec- tador descobre os porquês da perenidade de suas ideias.
Entre os mais de 300 vestidos de alta-costura que reluzem nas estruturas das salas espelhadas, nos espaços onde as culturas africana e oriental se mesclam às criações e nas alas destinadas aos sucessores de Dior, há várias referências a artistas, tanto contemporâneos quanto do século passado.
John Galliano e Yves Saint Laurent (1936-2008), por exemplo, interpretaram a intimidade de Dior com a arte a partir da pintura clássica.
Enquanto o espanhol Francisco de Goya (1746-1828) era um dos pintores reverenciados por eles, o belga Raf Simons, designer da marca até 2015, tomou emprestada a estética do alemão Sterling Ruby para compor parte de suas coleções na marca.
Imagens históricas da “era de ouro” da fotografia de moda também são destaque.
A foto de Richard Avedon (1923-2004) “Dovima com Elefantes” (1955), considerada pontapé do conceito da imagem “fashion” contemporânea, ganhou espaço nobre. A iluminação se alterna, com um foco de luz indo da imagem para o vestido original que a modelo veste na foto.
A cenografia de Nathalie Crinière e a curadoria da dupla Florence Muller e Olivier Gabet também traduzem a face comercial da grife.
Campanhas e frascos dos primeiros perfumes, material imagético da linha de beleza e uma série de acessórios completam a imersão proposta.
O material lembra que, além de exímio costureiro, Dior virou empresário de sucesso —único detalhe que escapou das previsões da quiromante do início deste texto.
Ele sabia que vestuário era negócio em expansão, fundamental para injetar o ânimo que tanto a indústria têxtil, arrasada pela escassez de tecidos, quanto a sociedade assombrada pelos efeitos da guerra, iriam querer comprar.
O mesmo tipo de escapismo que, aliás, está em voga nas passarelas, fazendo da mostra retrato fidedigno da costura de nosso tempo.
Pendurada sozinha numa das paredes do MoMA, uma blusa vermelha com capuz lembra um sudário.
A peça da marca Champion, das mais banais e populares entre jovens da periferia das cidades americanas, responde pelo lado não espetacular —e político— de uma exposição de moda no museu nova-iorquino.
Na ressaca da onda de violência policial que matou uma série de jovens negros nos Estados Unidos, casacos como esse deixaram de ser uma roupa qualquer e viraram símbolo de resistência.
É nesse poder da vestimenta de resumir uma época ou de se tornar monumento que parece estar calcada a maior mostra dedicada às roupas no MoMA em sete décadas.
Isso explica a justaposição um tanto conflitante de peças como a blusa com capuz e clássicos vestidinhos pretos, entre eles criações da Chanel e da Dior, sandálias Havaianas, cuequinhas brancas Calvin Klein e as roupas cheias de calombos que a estilista Rei Kawakubo criou para a sua grife Comme des Garçons no final dos anos 1990. HYPE Essa seleção de itens incontornáveis na história da moda respira um ar despojado, valorizando o poder do design sobre o fetiche associado às roupas.
Às vezes, porém, escancara que a relevância de uma peça tem menos a ver com pensamento estético e mais com a força do marketing e do hype em torno dela. Talvez porque a história não seja tão simples quanto faz parecer a longa —e austera— lista de todos os 111 itens da mostra na entrada das galerias.
Enumeradas ali, as peças parecem ter o mesmo peso, celebradas pela influência que exerceram ao longo dos anos, mas também rebaixadas a um simples número.
Enquanto neutraliza o poder de deslumbramento de algumas roupas, como a mítica bolsa Birkin da Hermès, saltos usados por Elton John e um macacão da era espacial que já vestiu David Bowie, a mostra eleva à condição de peça de museu coisas como máscaras cirúrgicas usadas nas ruas de Tóquio, camisas polo, biquínis e até pochetes.
Isso está longe de ser um problema e casa com a tradição do MoMA de reconhecer como parte da história aquilo que outros museus vão pensar só depois em incorporar a seus acervos de design.
Mas outra reflexão que fica é até que ponto instituições museológicas não estão se deixando levar pela lógica do mundo corporativo, nesse caso a do fast fashion.
Quase tudo na exposição está à venda na loja à saída do museu e em outras butiques espalhadas pela cidade.
No fundo, tudo que é moda dentro das galerias do museu pode virar lucro do lado de fora, da blusa com capuz à camisetinha branca imortalizada por James Dean, o que esvazia qualquer traço de caráter político dessa mostra. VÉU HI-TECH Fora as peças mais emblemáticas ali, o esforço de extrair contestação ativista das roupas resulta um tanto anêmico, mas lá estão também outras criações recentes da moda global que refletem como a indústria do vestuário não pode ignorar um planeta de fronteiras mais diluídas.
Nessa corrente, estão itens como uma versão hi-tech do véu muçulmano, peça da Uniqlo, o burkini, mistura de biquíni com burca, item quase obrigatório nas praias do Oriente Médio, e famosos “zoot suits”, os ternos larguíssimos usados por negros do Harlem na década de 1940.
Um ponto de equilíbrio na exposição vem desse mesmo bairro nova-iorquino.
Numa das alas mais fortes da mostra, estão as criações de Dapper Dan, um estilista negro que recriou com retalhos encontrados na vizinhança clássicos da Gucci e da Louis Vuitton até ser contratado por essas grifes, provando que a moda, como quer o MoMA, é uma via de mão dupla entre lucro e vida.