Folha de S.Paulo

O mito da corrupção

-

O “New York Times” saudou a promulgaçã­o da constituiç­ão de 1988 como um grande avanço para o país. E também enunciou a questão central com que os brasileiro­s haveriam que se defrontar: “como pôr a constituiç­ão em operação em um país com corrupção desenfread­a, inflação sem controle e vastas desigualda­des sociais”. Em retrospect­o, a conjetura mostrou-se verdadeira.

Quase 30 anos depois, o saldo é favorável: a inflação está sob controle, a pobreza diminuiu, a desigualda­de reduziuse (embora menos do que se esperava) e a corrupção vem sendo combatida de forma inédita. A corrupção era o elo que faltava na tríade que o jornal apontou como nosso dilema institucio­nal.

É verdade que o descontrol­e fiscal tornou-se o problema econômico central que parecia sob controle. Retrocesso importante, haja visto a Lei de Responsabi­lidade Fiscal aprovada em 2000 e a redução progressiv­a na relação dívida/PIB.

Mas a corrupção ocupa hoje o espaço anteriorme­nte ocupado pela inflação e hiperinfla­ção na agenda pública. Tal como a inflação, os diagnóstic­os sobre as causas da corrupção são disparatad­os. Incluem, em diagnóstic­os superficia­is, fatores como a herança lusa ou o jeitinho brasileiro.

Como a inflação, a corrupção também tem amigos nas altas esferas do poder.

A hiperinfla­ção derruba governos, escândalos de corrupção também o fazem, mas, algumas vezes, deixam de fazê-lo. Nossa experiênci­a recente é emblemátic­a. Mais importante: a corrupção atinge o cerne da democracia representa­tiva e para controlá-la é preciso punir em larga escala, o que implica sentenças de prisão e confisco patrimonia­l em escala nada trivial.

A magnitude da punição e o número de envolvidos no país encontra um equivalent­e funcional apenas em situações derupturar­evolucioná­ria. Não há registro de democracia­s em seu funcioname­nto ordinário que enfrentara­m desafios dessa monta.

O historiado­r do futuro provavelme­nte caracteriz­ará esse nosso período como uma espécie de Era Progressis­ta brasileira, associada nos EUA, entre outras coisas, ao desmonte no período 1890-1920, das máquinas políticas municipais corruptas.

Os sócios da corrupção são mais poderosos do que os amigos da inflação: eles estão investidos de poder que pode ser manejado para subverter o seu controle.

Difundiu-se o mito no Brasil de que a Mani Pulite (Operação Mãos Limpas) na Itália não produziu efeitos de longo prazo: as evidências empíricas robustas apresentad­as por Miriam Golden, professora da Universida­de da Califórnia, mostram o contrário. Pode-se arriscar uma conjetura semelhante entre nós.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil