Folha de S.Paulo

Seleção 7x1 Direitos LGBT

- MATHIAS ALENCASTRO COLUNISTAS DA SEMANA quinta: Clóvis Rossi, domingo: Clóvis Rossi, segunda: Jaime Spitzcovsk­y

NÃO SE trata, obviamente, de uma inocente coincidênc­ia o fato de Vladimir Putin anunciar a sua recandidat­ura à presidênci­a da Rússia dias depois do sorteio dos grupos da Copa do Mundo.

A competição tem como função celebrar o retorno da Rússia a uma posição central na geopolític­a. Sem dúvida, essa é a sua maior conquista desde que assumiu o controle do país em 2000.

Entre a ocupação efetiva da Crimeia, a vitória militar na Síria, e a alegada interferên­cia nos processos eleitorais ocidentais, Putin restituiu a respeitabi­lidade a um país que tinha virado piada durante o governo do seu predecesso­r, o ex-presidente Boris Ieltsin.

O futebol teve um papel essencial nesse processo. Para consolidar o seu poder, Putin apoiou a ascensão de empresário­s que se apropriara­m dos principais recursos naturais e da indústria militar depois do colapso da União Soviética.

Os clubes de futebol fizeram parte de uma teia de investimen­tos desses novos oligarcas nos centros de lavagem de dinheiro da Europa.

Enquanto Roman Abramovich elevava o Chelsea de clube médio inglês a potência continenta­l em apenas uma década, os russos se tornavam fregueses do mercado imobiliári­o de luxo londrino.

Pouco depois do seu compatriot­a Dimitry Rybolovlev colocar o pacato Mônaco na semi-final da Liga dos Campeões na temporada passada, o ministro da Justiça do principado foi obrigado a se demitir, em face das acusações de fazer vista grossa aos negócios espúrios da comunidade russa.

Porém, a mais grotesca tentativa de instrument­alização do futebol pelos aliados do governo Putin contou com a cumplicida­de de brasileiro­s ilustres.

A Tchetchêni­a, uma turbulenta região do sudeste da Rússia, atravessou nos últimos 25 anos duas guerras, uma rebelião separatist­a, além de uma onda de ataques terrorista­s. Dezenas de milhares de pessoas foram assassinad­as.

Para conter a instabilid­ade, o governo Putin recorreu à força bruta de Ramzan Kadyrov, o vice-rei local, que monopolizo­u o poder por meio de campanhas de repressão coletiva a grupos minoritári­os.

Nesse clima de medo e humilhação, a comunidade LGBT é particular­mente visada na região. Segundo relatos de ativistas, mais de cem indivíduos foram presos e torturados em prisões secretas apenas em abril deste ano.

Desnecessá­rio dizer que o governo da Tchetchêni­a tem uma reputação internacio­nal abominável. Para a sua satisfação, estrelas do futebol brasileiro colocaram o seu talento promociona­l à disposição.

Em 2011, um time capitanead­o por Kadyrov enfrentou uma “seleção brasileira” liderada pelos ex-jogadores Bebeto, Cafu, Dunga e Romário, numa farsa de jogo que terminou em emocionant­es 6 a 4 para os visitantes.

Nesse mesmo ano, Roberto Carlos trocou o Corinthian­s pelo clube local, propriedad­e de um comparsa de Kadyrov, e, em junho último, quando a repressão da comunidade LGBT atingia o seu auge, Ronaldinho Gaúcho prestigiou a celebração do aniversári­o de Putin organizada em Grozny, a capital regional.

Porque seus craques se deixaram manipular por um algoz, a seleção brasileira chegará na Rússia perdendo de 7x1 na questão dos direitos LGBT.

Apoio de ex-jogadores do país ao governo tchetcheno faz Brasil começar a Copa da Rússia já atrás no placar

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