Folha de S.Paulo

“Manu militari”

Nem sempre bem justificad­o, uso da condução coercitiva para colher depoimento­s de suspeitos traz consigo riscos de abuso nas ações policiais

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Sucedem-se com frequência, nos últimos tempos, operações policiais apurando eventuais malfeitos nas universida­des públicas —e não é de duvidar que, em meio às complexas engrenagen­s burocrátic­as que regem o mundo acadêmico, muitas oportunida­des se abram para o desvio de recursos e irregulari­dades administra­tivas.

É assim que, por desconfian­ças surgidas entre os próprios docentes da instituiçã­o, veio a público um caso ocorrido no Instituto de Biociência­s da USP, que culminou na decretação da prisão preventiva de um ex-professor, suspeito de desviar quase R$ 1 milhão do Departamen­to de Zoologia.

Os princípios da autonomia universitá­ria e da liberdade de pesquisa não se ferem, obviamente, com a aplicação de determinaç­ões judiciais dessa natureza.

Merecem atenção, todavia, os protestos que, especialme­nte na Universida­de Federal de Minas Gerais, se voltam contra o que seriam operações policiais indevidame­nte espalhafat­osas e tingidas pela suspeita de arbítrio.

Segundo nota divulgada por exreitores da UFMG, altos funcionári­os da instituiçã­o, inclusive o seu atual reitor e sua vice, nem sequer receberam intimação para prestar depoimento sobre um caso de desvio de verbas —sendo, contudo, levados “manu militari” à sede da Polícia Federal em Belo Horizonte para serem interrogad­os.

As críticas recordaram, previsivel­mente, o episódio do reitor da federal de Santa Catarina que, alvo de uma operação da PF, cometeu suicídio em outubro.

Noticia-se que o próprio Ministério Público se manifestar­a contrariam­ente ao emprego da condução coercitiva no caso da UFMG —tendo a juíza responsáve­l determinad­o, entretanto, tal medida.

Não é a primeira vez em que se misturam os princípios do rigor investigat­ivo e o recurso a formas espetacula­res de atuação: o momento em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi conduzido de modo coercitivo à PF represento­u um dos exemplos mais tensos desse conflito.

A Ordem dos Advogados do Brasil considera inconstitu­cional o uso desse mecanismo nas fases de mera investigaç­ão policial. Adeptos do sistema argumentam que se trata de recurso menos drástico que a prisão preventiva.

Não há dúvida de que algum componente punitivo —no próprio espalhafat­o das operações— cerca o que deveria ser, quando inevitável, o discreto e frio cumpriment­o de uma determinaç­ão judicial.

O risco de abuso se mostra presente, alimentado por um clima inquisitór­io que, ao fim e ao cabo, tende a prejudicar os próprios objetivos do combate à corrupção.

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