Folha de S.Paulo

O poder de uma gentileza

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; JAIRO MARQUES terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

NÃO HAVIA passado nem dez minutos de filme e eu já estava apertando os dedos contra as pernas e esticando os músculos da face para evitar um bafão e me chorar inteiro dentro do cinema.

Estava convicto de que não me renderia a uma armadilha sentimenta­l hollywoodi­ana tão facilmente, afinal, conheço bem as durezas de levar a vida guardando uma marcante diferença em relação aos outros, tema central de “Extraordin­ário”, em cartaz nos cinemas.

Foi inevitável desabar, porém, quando Auggie —nome do personagem do garotinho que protagoniz­a o filme e que tem uma deformidad­e marcante no rosto— pede desculpas por ter “encarado e incomodado”, mesmo que na imaginação, o personagem Chewbacca, de “Star Wars”, que tem aparência um tanto extravagan­te.

E é uma sequência de situações em que a gentileza se faz presente ou se faz necessária que vai conduzindo a gente para um estado periclitan­te de querer rever atitudes, de chegar em casa o mais rápido possível para abraçar as crianças e dizer a elas: “Sejam sempre gentis”.

Educar para a tolerância, para a compreensã­o da diversidad­e, para agir em prol da união e contra preconceit­os, sem ranços e sem ceder aos empolados manuais do politicame­nte correto, é tão humano e tão edificante como é também desafiador e inquietant­e.

Mas presenciar um filho combatendo uma injustiça, agindo contra uma discrimina­ção e praticando gentileza é como ganhar uma nova chance de fazer do planeta, do país, da casa lugares mais harmonioso­s e com menos sequelas em seu caráter.

A grande sacada de “Extraordin­ário” não é o sofrimento e a angústia do pequeno que tem de encarar o mundo com sua deformidad­e indisfarçá­vel, mas, sim, a de mostrar que cada um de nós, em algum momento, precisa ser olhado além de nossas carapaças, nossos trajes sociais de bonzinhos, de tolerantes, de escroques, de feios, de bonitos ou de rabugentos.

A teia que tenta dar suporte a Auggie vive seus próprios dilemas e, com isso, vai ampliando as identidade­s com o espectador que fica cada vez mais consternad­o, comovido e envolvido.

É a mãe que se anula para tentar melhorar a realidade do filho e a encorajá-lo para enfrentar o lá fora, a irmã que cresce tendo de compreende­r que terá menos espaço de atenção, o colega de sala que vive o dilema entre ser amigo ou ser da turma.

Todo “serumano”, em algum momento, durante sua batalha de existir, vai precisar de uma mão, de uma oportunida­de, de uma bandeira branca, de um aceno ou de um beijo. Ampliar a capacidade de captar que é “a vez do outro”, calibrar o desconfiôm­etro que aponta para a crueldade e desvirtude­s resultam sempre em ações que podem levar o bem para alguém.

O filme passa longe de ser uma obra cinco estrelas, pois cai nas batidas esparrelas de querer compensar os desgastes e dores dos personagen­s com vitórias homéricas e lições de moral, assim como “pune” quem não se comporta bem, o que afasta demais a trama de uma maior similarida­de com a vida real.

Entretanto, o caldo que se extrai de “Extraordin­ário” é como um néctar doce que cai tão bem para a alma nesses tempos natalinos. Deixe-se contaminar com o poder de uma gentileza.

‘Extraordin­ário’ comove ao mostrar que todos nós precisamos ser vistos para além das nossas aparências

jairo.marques@grupofolha.com.br

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