CRÍTICA Tradução ousada traz à luz texto grego protossurealista
‘Alexandra’, de Lícofron, narra fracassos da profetisa, filha do rei Príamo
FOLHA
“Vejo o tição alado apressurar-se ao rapto / de uma columba, perra da ínsula de Pfenos / que um abutre aquícola concede à luz / na carapaça sob o cone de um invólucro.”
Essa imagem protossurrealista é o que lemos nos versos 86-89 da “Alexandra” de Lícofron (séc. 3º a.C.), traduzido pela primeira vez ao português por Trajano Vieira. Trata-se de um poema famoso, desde a Antiguidade, como “obscuro”, e com razão.
Como lembra o próprio Vieira, ao longo de seus 1.474 versos, temos 310 palavras que aparecem exclusivamente nesta obra, além de outras 104 que ali aparecem pela primeira vez na língua grega.
O que lemos neste poema complexo é o relato da profecia da troiana Cassandra (também chamada Alexandra), filha do rei Príamo, uma vidente condenada por Apolo a nunca ser compreendida em seus vaticínios; ela, presa, anuncia a um mensageiro todo o destino de Troia e dos gregos e, mais, também os acontecimentos futuros do mundo antigo, até a fundação de Roma e os feitos de Alexandre, o Grande.
Portanto o que vemos é o relato do relato, o modo como o mensageiro leva a Príamo o que acabou de ouvir.
Temos então um longo monólogo trágico, escrito em trímetros iâmbicos (o principal metro do teatro grego), porém com uma narratividade épica atravessada por uma linguagem obscura e oracular. Mas ela fracassa no sentido, e é nesse fracasso que está o sucesso de Lícofron.
O mais notável é que o texto tem precisão em sua obscuridade, porque precisa remeter aos eventos míticos da guerra e da história, porém de modo a manter a incompreensibilidade original do mensageiro e do rei Príamo, ele cria um futuro do pretérito que, para o leitor, se torna prova do passado, elo entre a narratividade do mito distante e da história próxima.
Assim Lícofron refaz o percurso do sentido turvo em duas lâminas: o presente de Cassandra e Príamo aponta para um futuro absolutamente incompreensível, e o presente do leitor que reconfigura o contexto passado e, portanto, tem uma chance de revisar o labirinto hermético da escrita, desde que disposto a cair num abismo do sentido.
Na leitura de “Alexandra”, é a radicalidade poética que ganha a cena, entre neologismos, arcaísmos, rasgos sintáticos, metáforas inesperadas, imagens aparentemente surreais, referências pouco conhecidas, num enviesamento generalizado, numa recusa da clareza imediata.
Diante de tal desafio de interpretação e tradução, Trajano Vieira talvez tenha realizado