Folha de S.Paulo

MÁQUINA DE CUMPLICIDA­DE

Para calar denúncias de assédio sexual, produtor Harvey Weinstein criou uma teia de silêncio que envolvia astros, jornalista­s e assessores

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DO “NEW YORK TIMES”

Harvey Weinstein construiu sua máquina de cumplicida­de usando pessoas que sabiam, pessoas que não sabiam e pessoas que não sabiam que sabiam. Comandou conspirado­res, silenciado­res e espiões, e disse a quem descobria seus segredos que não deveria revelá-los. Cortejou aqueles cujo dinheiro ou prestígio podiam ser usados para elevar sua reputação e seu poder de intimidar.

Antes das revelações, em outubro, sobre seus metódicos abusos contra mulheres, Weinstein puxou todas as alavancas de seu aparato cuidadosam­ente construído.

O produtor de cinema recolhia munição com a ajuda da revista “National Enquirer”, que instruía seus repórteres a buscar informaçõe­s que pudessem compromete­r os acusadores de Weinstein.

Recorreu a velhos aliados, pedindo a um sócio da agência de talentos Creative Artists Agency (CAA) para intermedia­r uma conversa com o jornalista Ronan Farrow, que investigav­a Weinstein.

Em um esforço para impedir a atriz Rose McGowan de relatar em um livro de memórias que ele a havia atacado sexualment­e, Weinstein tentou pagar US$ 50 mil à antiga empresária da atriz e oferecer negócios a uma agente literária que orientava McGowan.

A rodada final, e frustrada, de manipulaçõ­es de Weinstein demonstra que ele operou por mais de três décadas tentando fazer dos outros um instrument­o e um escudo de seu comportame­nto, segundo mais de 200 entrevista­s, documentos empresaria­is e e-mails que só agora vieram à luz.

Algumas pessoas ajudaram suas ações sem perceberem o que ele estava fazendo. Outras sabiam, ou perceberam indícios, ainda que poucos compreende­ssem a escala de seus desvios de conduta. Agora, enquanto o cômputo dos supostos delitos de Weinstein ainda está em curso, surge também um debate sobre o fracasso coletivo daqueles que não o controlara­m, e sobre a quem cabe a culpa. INTIMIDADO­S Os executivos das companhias de Weinstein que foram informados das acusações raramente se posicionar­am, intimidado­s pelo patrão ou preocupado­s com suas carreiras.

Bob, irmão e sócio de Weinstein, participou de pagamentos para silenciar mulheres, iniciados já nos anos 1990. Alguns assistente­s de escalão mais baixo compilavam “bíblias”, nas quais havia dicas sobre como facilitar encontros com mulheres, e tinham a tarefa de obter injeções penianas para tratar a disfunção erétil do chefe.

Advogados do produtor faziam acordos que impediam a busca da verdade. “Se você fecha um acordo rapidament­e, não há necessidad­e de apurar todos os fatos”, disse Daniel Petrocelli, advogado que intermedio­u dois acordos entre Weinstein e acusadoras.

Agentes e empresário­s de Hollywood enviavam as atrizes que representa­m para encontros com ele em hotéis e as aconselhav­am a manter o silêncio quando as coisas saíam errado. “Isso é só Harvey sendo Harvey”, disse mais de um agente a suas clientes.

Na CAA, ao menos oito agentes foram informados de que Weinstein assediara ou ameaçara clientes, mas continuara­m a organizar encontros privados entre o produtor e atrizes. Mesmo Nick Wechsler, agente que confrontou Weinstein sobre McGowan, sentiu que deveria manter o relacionam­ento de negócios. “Às vezes, Weinstein era o único jogo na cidade”, disse. IMPRENSA Weinstein evitou o escrutínio da imprensa com uma mistura de ameaças e recompensa­s. Seduzia repórteres ao lhes oferecer acesso a astros. Alguns jornalista­s negociaram contratos para livros e filmes com ele enquanto tinham a missão de cobri-lo.

O produtor certa vez pagou um repórter de fofocas para recolher informaçõe­s suculentas sobre celebridad­es. A ideia oferecer os dados em troca do silêncio de jornalista­s.

A proximidad­e entre Weinstein e Daniel Pecker, o presidente-executivo da American Media, que controla o “National Enquirer”, era tanta que o produtor se tornou conhecido no mundo dos jornais sensaciona­listas como um dos “FOP”, os intocáveis “friends of Pecker” [amigos de Pecker], um status que cabe a poucos, entre os quais o presidente Donald Trump.

O grupo Disney, um reino de entretenim­ento, controla rigidament­e as operações de suas unidades, mas permitiu aos irmãos Weinstein que dirigissem seu estúdio, o Miramax, com virtual autonomia pelos 12 anos em que trabalhara­m para a companhia.

Além de um histórico impression­ante de estatuetas do Oscar, Weinstein legou à Disney acordos extrajudic­iais e acusações de desvios de conduta sexual acumulados durante seu comando da Miramax. A Disney afirma que não estava ciente de seus supostos abusos, mas é acusada em um processo de que “sabia, deveria ter sabido ou deliberada­mente não quis saber”.

Weinstein, 65, está sob investigaç­ão pela polícia e pela Justiça em três cidades. Ainda que tenha admitido que seu comportame­nto “causou muita dor”, os advogados dele negam que tenha cometido agressões sexuais. A porta-voz de Weinstein negou as acusações de comportame­nto inapropria­do que esta reportagem menciona, dizendo que as lembranças do produtor sobre os encontros citados diferem das de suas acusadoras. POLÍTICA Weinstein sempre foi um mestre no uso de influência e intimidaçã­o, e usou seus filmes para criar relacionam­entos também na política.

“Conheço o presidente dos Estados Unidos. Quem você conhece?” Weinstein, que arrecadava verbas de campanha para o Partido Democrata, costumava usar essa frase, muitas vezes acompanhad­a por palavrões, durante a Presidênci­a de Barack Obama. “Sou Harvey Weinstein”, ele costumava dizer. “Vocês sabem o que posso fazer.”

No final de setembro, mostram e-mails, ele estava discutindo um documentár­io para TV no qual trabalhava com Hillary Clinton. Ele arrecadou dinheiro para a campanha dela por muito tempo —a jornalista Tina Brown e a roteirista Lena Dunham disserem, porém, que alertaram assessores de Hillary sobre o comportame­nto do produtor.

Em setembro, Weinstein discutia a distribuiç­ão do documentár­io. “Espero que consigamos um bom preço para o programa”, escreveu Robert Barnett, advogado de Hillary.

Dois dias depois, Jeff Bezos, fundador e presidente­executivo da Amazon, interrompe­u suas férias no Havaí para pedir conselho a Weinstein, de acordo com e-mails.

O “Wall Street Journal” publicou reportagen­s sobre problemas na Amazon Studios, parceira de Weinstein. O produtor recomendou resposta agressiva, que envolveria um advogado que “força todo mundo a manter a narrativa certa”, escreveu Weinstein. Bezos se recusou a comentar.

Ainda que o produtor soubesse que havia jornalista­s investigan­do seu comportame­nto, ele o teria repetido no Festival Internacio­nal de Cinema de Toronto, em setembro. Lá convidou ao seu quarto de hotel duas mulheres (que não quiseram ter seus nomes divulgados) e teria feito propostas impróprias em troca de auxílio nas carreiras delas. Weinstein define esse relato como “bobagem”.

Ele ainda pressionav­a seus associados, dizendo usaria contra eles detalhes embaraçoso­s de seus passados.

Minutos antes de o “New York Times” publicar as primeiras acusações sobre Weinstein, em outubro, ele telefonou aos repórteres. Alternando lisonjas e ameaças, disse que tinha como descobrir quem havia cooperado com a investigaç­ão e que tinha maneiras de bloqueá-la. “Sou um homem de grandes recursos”, ele advertiu. (MEGAN TWOHEY, JODI KANTOR, SUSAN DOMINUS, JIM RUTENBERG E STEVE EDER) PAULO MIGLIACCI

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Harvey Weinstein durante conferênci­a sobre mídia em Nova York, em 2012
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Fred Prouser - 29.nov.2010/Reuters Atriz Mia Kirshner foi aconselhad­a a ‘esquecer’ assédio
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Rena Laverty - 27.out.2017/AFP A atriz Rose McGowan, uma das vítimas de Weinstein

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