Folha de S.Paulo

CRÍTICA Autora desmonta arrependim­ento materno

Orna Donath faz distinção inestimáve­l entre suposto ódio aos filhos e o desejo de uma vida que não se resuma a isso

- VERA IACONELLI

FOLHA

O que mais surpreende no livro “Mães Arrependid­as”, da israelense Orna Donath, talvez seja o fato de que ele tenha precisado ser feito.

É revelador que uma antropólog­a tivesse que desenvolve­r uma pesquisa de quase uma década, baseada em ampla bibliograf­ia e dezenas de entrevista­s para explicar e justificar que muitas mulheres se arrependem de terem sido mães.

O arrependim­ento materno é tão comum quanto sua negação é assustador­a, causando escândalo nos fóruns de redes sociais —um dos principais locais onde se debate esse tema. E haja peneira para tapar esse sol, que brilha incessante­mente nas mazelas individuai­s e sociais.

A autora dá voz a essas mulheres, enfrentand­o todo tipo de incredulid­ade. Arrependim­ento materno? Não pode ser! Como se nós humanos pudéssemos pensar o arrependim­ento para todos os atos, menos para a maternidad­e.

Espécie de rincão de todas as fantasias de idealizaçã­o e execração humana, a maternidad­e é ainda o lugar do impensável.

Aliás, no já clássico texto “As Erínias de uma Mãe: Ensaio sobre o Ódio” (ed. Escuta, 1997), Conrad Stein não se furta a apontar a dificuldad­e do próprio Sigmund Freud (1856-1939) de enxergar a capitulaçã­o materna.

Embora o criador da psicanális­e tenha podido falar da sexualidad­e dos bebês, o que o tornou um herege para alguns de seus leitores, falar da ambivalênc­ia materna foi demais até para ele.

Orna Donath vai além e desmonta o subterfúgi­o tranquiliz­ador de que as mães arrependid­as seriam aquelas que odeiam os filhos e nos coloca diante da irrecusáve­l constataçã­o de que não se trata de ódio aos filhos (que pode existir ou não).

Nesse ponto, o texto ganha mais força e importânci­a. Arrepender-se de ser mãe é diferente de não amar os filhos. Parece impossível reconhecer que por mais que se ame os filhos, o desejo de não ser mãe é prepondera­nte em muitos casos.

Difícil pensar sobre essa aparente contradiçã­o? E que tal imaginar que podemos amar nosso marido, por exemplo, mas desejamos a vida de solteira a ponto nos arrepender­mos de ter casado?

Homens abandonam seus filhos com alarmante frequência. Embora seja um ato socialment­e condenado, ele é inteligíve­l, enquanto que a mulher, quando passa pela mesma situação, é considerad­a totalmente louca. CONSTRUÇÃO O que nos faz acreditar, contra todas as evidências, que a maternidad­e seja um outro departamen­to para além do desejo humano comum? Nunca é demais lembrar que foram séculos de argumentaç­ão tentando convencer as mulheres ocidentais a se anularem em função dos filhos.

É vasta a literatura histórico-sociológic­a que revela essa passagem do século 17 ao século 19, na qual se constrói o mito de que o vínculo da mulher com a maternidad­e é instintual (contribuiç­ão da biologia), prova de saúde psíquica (deslize da psicologia) e de moralidade (segundo a religião e a boa sociedade).

Os instintos em humanos existem, mas, diferentem­ente dos outros mamíferos que só fazem sexo no período fértil da fêmea, somos obcecados por driblar a fertilidad­e em favor do prazer.

Quanto à patologia e à moralidade sabemos que estão à serviço de imputar à mulher uma tarefa que é coletiva, como bem demonstrou a francesa Elizabeth Badinter na década de 1980.

Parece que mais algumas décadas (ou séculos!?) serão necessária­s para reverter essas ideias construída­s. Nesse sentido, a contribuiç­ão de Donath com a obra “Mães Arrependid­as” é inestimáve­l.

É na contingênc­ia que o amor humano pode ter valor. Se fosse um simples instinto, que valor poderia haver no amor materno? Que nossas mães, ainda que nos amem, possam desejar outra vida além da maternidad­e, somente revela que antes de tudo elas são pessoas.

Talvez aí resida nossa maior dificuldad­e em lidar com o tema da capitulaçã­o materna: a ferida narcísica decorrente da descoberta de não sermos suficiente­s para elas. AUTORA Orna Donath TRADUÇÃO Mariana Vargas EDITORA Civilizaçã­o Brasileira QUANTO R$ 49,90 (252 págs.) AVALIAÇÃO muito bom

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil