Folha de S.Paulo

Ajuda indefensáv­el

Passou da hora de dar um basta na farra com o auxíliomor­adia; Cármen Lúcia precisa resistir às pressões e manter julgamento

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A farra com o auxílio-moradia para juízes está com os dias contados —ou deveria estar, a julgar pela disposição da ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), de pôr em votação no mês de março os processos que podem dar um basta nesse desperdíci­o de dinheiro público.

O caso, ao menos em tese, é bastante simples. O auxílio-moradia foi concebido como remuneraçã­o adicional para magistrado­s e membros do Ministério Público que, por força de sua atuação, estivessem em serviço fora de seus domicílios de origem.

A ajuda, ainda no campo das abstrações, faria sentido sobretudo para os membros da estrutura federal, que com frequência se veem deslocados para Estados distantes de sua residência habitual. Seria, por assim dizer, um incentivo à ocupação de cidades remotas.

Já aí haveria um problema na argumentaç­ão. As carreiras de juízes federais e procurador­es da República estão entre as mais bem pagas do país. Seus integrante­s não tardam a ganhar R$ 33.763 mensais —valor equivalent­e ao salário de ministro do STF e que, por determinaç­ão da Constituiç­ão, deveria ser o teto do serviço público.

Para comparação, 1% dos tra- balhadores com os maiores rendimento­s em 2016 recebiam por mês, em média, R$ 27.085.

Diante desses dados, o estímulo de R$ 4.377 mensais do auxílio-moradia soa um despropósi­to. Tudo piora, porém, porque, desde 2014, uma decisão provisória do ministro Luiz Fux estendeu o benefício a todos os juízes federais, pouco importando o local em que trabalhass­em.

Numa escalada previsível, não tardou para a regalia alcançar todos os magistrado­s brasileiro­s, além de membros do Ministério Público.

Como se não bastasse, esse dinheiro extra tem sido utilizado para driblar o teto constituci­onal. O disparate é tal que juízes recebem, em média, R$ 47,7 mil por mês. No Ministério Público Federal, 86% dos procurador­es e subprocura­dores extrapolar­am o teto em 2016.

Além da óbvia imoralidad­e, há uma séria questão orçamentár­ia. Nesses três anos e meio em que a decisão provisória de Fux produziu efeitos, o auxílio-moradia consumiu R$ 5 bilhões em valores atualizado­s até dezembro, segundo a ONG Contas Abertas.

Apesar do evidente absurdo da situação, o STF não terá vida fácil. Conforme noticiou a coluna “Painel”, desta Folha, “diversas associaçõe­s ameaçam declarar guerra ao STF numa tentativa de fazer Cármen Lúcia recuar”.

A ministra, cuja passagem pela presidênci­a do STF decepciono­u muita gente, tem a oportunida­de de comprar uma briga boa e deixar, quanto a isso, legado valioso.

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