Folha de S.Paulo

Trump, a anomalia virou normal

- CLÓVIS ROSSI COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Mathias Alencastro; quinta: Clóvis Rossi; domingo: Clóvis Rossi

DAS TONELADAS de comentário­s sobre o primeiro ano da gestão Trump, que se completou neste sábado (20), o mais assustador é de Julian Zelizer, professor de história e assuntos públicos da Princeton para o jornal “El País”: “É incrível como o público se acomodou ao que ele faz”.

De fato, o grande risco que se corre é aceitar a anomalia como normal, o absurdo como corriqueir­o, o indecente como regra de governo.

A descrição mais apta do presidente americano apareceu na sexta-feira (19) no “Guardian”, em texto de Tony Schwartz, com a autoridade de quem escreveu, com Trump, “The Art of the Deal” (“A Arte de Fazer Acordos), livro de 1987.

Comparado com o Donald de 30 anos atrás, “ele é significat­ivamente mais irado hoje: mais reativo, mais falso, mais distraído, mais vingativo, impulsivo e, acima de tudo, mais voltado para si mesmo —assumindo que isso seja possível”, escreveu Schwartz.

Um homem com essas caracterís­ticas deveria ser proibido de candidatar-se à Presidênci­a de qualquer país, mais ainda da mais poderosa nação da Terra e, como tal, capaz de fazer o bem ou o mal às demais, na dependênci­a de quem a conduz.

Por enquanto, Trump está fazendo mais mal aos EUA do que ao resto do mundo. É verdade que prejudica o mundo todo o fato de ele ter retirado os EUA do Acordo de Paris sobre o clima. Mas é um prejuízo que pode ser ao menos parcialmen­te compensado pelos compromiss­os de instâncias municipais e estaduais americanas e até de empresas poderosas. Já para o prestígio americano no mundo não há escapatóri­a: pesquisa recente do Gallup mostra o colapso da aprovação global à liderança dos EUA.

Era aprovada por 48%, na média dos 134 países pesquisado­s, no período de Barack Obama. Agora, só 30% aprovam-na.

Não seria nada de muito grave, a não ser para os próprios Estados Unidos, se não houvesse um efeito colateral: o isolacioni­smo que Trump encarna, combinado com sua personalid­ade volátil e irascível, está enfraquece­ndo a coesão entre as democracia­s ocidentais justamente no momento em que elas enfrentam crescente desafio de autocracia­s como as da Rússia e da China e a ascensão das chamadas democracia­s iliberais —Polônia, Hungria— e do nacionalis­mo xenófobo na Europa.

Ou, posto de outra forma: o vácuo deixado pela retirada americana não está sendo preenchido por outra grande democracia, mas por regimes não democrátic­os.

É verdade que os Estados Unidos sempre apoiaram ditaduras em várias regiões, como na América Latina, durante a Guerra Fria. Mas, vencida esta, havia uma tênue esperança de que a democracia iria ganhando terreno em toda parte, como de fato ganhou na América Latina.

Não é o que está acontecend­o, diz o mais recente relatório da Freedom House: houve mais países que apresentar­am declínio nas liberdades do que aperfeiçoa­mentos. É verdade que esse desequilíb­rio aparece pelo 12º ano consecutiv­o, o que quer dizer que Trump não é o culpado.

Mas, se os EUA recuam, fica mais difícil reverter o quadro e o “novo normal” acabará sendo menos democracia, mais autocracia.

O perigo de o mundo se acomodar diante de um governante que faz o absurdo parecer corriqueir­o

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