Após 5 anos, Kiss começa a deixar legado
Mobilização pós-tragédia produziu novas leis e avanços em tratamentos, qualidade de materiais e treinamento
Pais de vítimas do incêndio lutam para que cidade não vire a página sem punição judicial dos culpados
É Flávio quem guarda as chaves da boate Kiss, onde um incêndio deixou 242 mortos e 636 feridos no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul.
Na última terça (16), ele destranca o cadeado para mostrar a jornalistas o palco de uma das maiores tragédias da história brasileira. Mesmo com a porta aberta, a escuridão é total —a mesma que envolveu os que, naquela madrugada há cinco anos, tentavam escapar do ambiente tomado por fumaça tóxica (leia mais na pág. B4).
A única porta tem 3 m de largura —pela lei, entrada e saída, cada uma com 3 m, deveriam ser separadas. É apenas um dos vários erros que colocaram a cidade de 320 mil habitantes no ranking dos grandes desastres mortais.
Faz poucos meses que Flávio José da Silva, 56, entrou pela primeira vez no local em que perdeu sua filha mais velha, Andrielle, então com 22 anos. “Não é fácil. Mas é necessário, porque as pessoas não podem esquecer o que aconteceu aqui”, diz o prestador de serviços em construção civil, vice-presidente da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
“É minha forma de fazer com que a vida dela não tenha sido em vão.”
Para os pais, a sensação de desperdício vem principalmente do fato de que até hoje ninguém foi punido pela Justiça. Mas seus esforços já produziram ganhos em áreas como legislação, certificação de materiais e educação.
“A AVTSM tem feito esforço enorme por medidas que não permitam a repetição de incidentes semelhantes”, diz Rosária Ono, professora de arquitetura da USP e coordenadora do Grupo de Fomento a Proteção de Incêndios.
Membros da associação participam de discussões da Frente Parlamentar Mista em Segurança contra Incêndio, criada após o desastre para propor políticas públicas.
Para alguns dos principais especialistas, embora ainda haja lacunas, houve avanços.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, foi aprovada no final de 2013 a Lei Kiss, que apertou regras de prevenção. Após três anos de discussão, a Câmara dos Deputados também aprovou, em 2017, uma lei federal de proteção contra incêndios. Mas o texto foi publicado com 14 vetos do presidente Michel Temer.
“Caiu o grande mérito da lei, que era considerar crime se um proprietário não cumprisse as regras”, diz o especialista em prevenção Marcelo Lima, 61, diretor-geral do Instituto Sprinkler Brasil.
“As pessoas sempre acham que o fogo nunca vai aparecer na sua casa e que as medidas de segurança atrapalham seu negócio. Sem uma imposição forte, a tendência é relaxar os cuidados”, diz o engenheiro químico, que se dedica ao tema há 30 anos.
É um problema sério num país que nem ao menos sabe quantas são as vítimas de incêndio, já que falta padronização e centralização dos dados estaduais. As estimativas chegam a 3.000 mortos/ano.
Outro ponto importante vetado, na opinião de Lima, é o que proibia o sistema de comandas —em que a cobrança é feita na saída. Isso leva estabelecimentos a estreitar as vias, para garantir o pagamento —como na boate Kiss, em que grades forçavam a passagem pelo caixa.
O engenheiro José Carlos Tomina, superintendente do Comitê Brasileiro de Segurança contra Incêndio, concorda com a crítica: “Saídas têm que ser amplas, com corredores sinalizados, desobstruídos e planejados para a vazão correta. O sujeito que arrume outro jeito de cobrar e controlar o pagamento.”
Ao menos um ponto relevante foi mantido, na avaliação de Lima: permitir que prefeituras fiscalizem quando não for possível a ação dos Bombeiros —só 11,4% dos 5.570 municípios brasileiros têm um posto da corporação.
Rosária Ono ressalva, porem, que só leis não resolvem. “Se cumpríssemos à risca o mínimo que é solicitado, o incidente da boate Kiss talvez não tivesse acontecido.” RESULTADOS Outro legado são centros de tratamento criados para as vítimas da Kiss, como o Ciava, da UFSM e o Acolhe Saúde, da prefeitura, que hoje compartilham a experiência com cidades que passaram por traumas: Mariana (MG), Chapecó (SC) e Janaúba (MG).
O movimento deflagrado pelo incêndio da Kiss ainda deve apresentar frutos, segundo Fatores que contribuíram para a tragédia, segundo especialistas Marcelo Lima.
Um deles é atualização da legislação na maioria dos Estados —nível administrativo responsável por incêndios. Um modelo nacional de legislação, base para os textos estaduais, foi elaborado na Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), mas não há prazo para publicação.
“É uma vergonha cada Estado ter suas regras. Não faz sentido um paulista ter mais segurança que um piauiense”, afirma Tomina.
Outra lacuna é a falta de controle de qualidade dos equipamentos e materiais, justamente um dos pontos vetados por Temer.
Segundo Tomina, são 72 as normas para projetar, fabricar, instalar e manter equipamentos como extintores de incêndio, mas faltam cerca de 70 para produtos e materiais de revestimento. No caso da Kiss, a espuma instalada no forro envenenou os frequentadores ao liberar gás cianeto quando queimada.
Ex-chefe do setor de combate a incêndio do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), ele afirma que depois de 2013 aumentaram os pedidos de ensaios sobre velocidade de propagação de chama e toxicidade de fumaça.
Para Ono, da USP, deveria ser compulsório ensino de segurança contra incêndio nos cursos de engenharia e arquitetura. “Noções básicas não são dadas nas escolas, muito porque são poucos os professores que as possuem”.
Em resumo, “O que se espera é que não fique nas costas do pai ou da mãe pensar se vai deixar o filho ir ou não a um lugar. Se a porta está aberta, o pai tem que poder confiar. As autoridades têm que garantir”, diz Tomina.
Mas o engenheiro não é otimista: “Acontecer outra boate Kiss para mim não seria surpresa. Tem muita porcaria aberta ainda”. Porta