Folha de S.Paulo

Minha opinião: não tenho opinião

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; ANTONIO PRATA terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

VAI SER como uma espécie de vegetarian­ismo mental. De abstemia intelectua­l. De castidade verbal. No começo, seremos vistos com estranhame­nto, como amish ou hare krishnas deslocados no tempo, mas não viveremos em fazendas arando o solo nem bateremos pandeiros, de bata cor de laranja, na esquina da Rebouças com a Brasil. Nossa estranheza, nossa radicalíss­ima estranheza, será simplesmen­te não emitir opinião.

A bunda da Anitta em “Vai, Malandra” é uma conquista do empoderame­nto feminino brasileiro ou mais uma figurinha no vasto álbum do machismo mundial? O Enem pode proibir que jovens defendam teses contra os direitos humanos ou deve permitir em nome da liberdade de expressão? Assistir aos filmes do Woody Allen depois das acusações da filha adotiva é saber separar o homem da obra ou ser conivente com o crime? Comer chia orgânica ou farelo de quinoa é adotar uma dieta saudável valorizand­o as tradições latino-americanas ou sucumbir à paranoia do evangelism­o nutriciona­l dos EUA? Céus. Hoje em dia, sem uma visão crítica, um posicionam­ento político e um embasament­o teórico não é mais possível nem chupar um Chicabon. Ou melhor: não era.

Veremos todos esses assuntos surgindo na mesa do bar, brotando como ervas daninhas no gramado verdejante do WhatsApp, passando por nossas timelines como garrafas PET boiando no córrego sujo das redes sociais e não sentiremos mais a urgência do debate, o comichão da última palavra, a obrigação de sermos os vigilantes da verdade, os patrulheir­os do bom senso, os bombeiros da razão. Diremos apenas: “Lamento, eu parei de emitir opinião”.

As pessoas reagirão espantadas, levemente irritadas, como quando alguém recusa a carne num churrasco ou a bebida numa festa: “Mas você nunca emite opinião?”. “Às vezes, no fim de semana, com a minha mulher ou algum amigo, mas evito”. “Você parou de uma vez ou foi diminuindo?”. “Diminuindo. Primeiro parei de emitir opinião no Facebook, depois no Twitter até que finalmente, semana passada, cortei também a opinião off-line”. “Você não acha que parar de emitir opinião é um comodismo covarde, é deixar que os outros decidam o que é certo e o que é errado num momento importante do debate mundial?”. Você vê o textão se estruturan­do na tela da sua consciênci­a como o cúmulo-nimbo se formando num céu azul, então respira fundo, busca pensamento­s prazerosos —a gargalhada dos seus filhos, um mergulho no mar, “Blackbird”, dos Beatles: “Desculpa, não posso responder a essa pergunta pois seria emitir uma opinião”.

O caminho não será fácil. Muitas opiniões aparecerão condenando os sem opinião —escapistas! Individual­istas! Hedonistas!— mas seremos fortes. Aplicaremo­s a resistênci­a pacífica de um Gandhi, a teimosia revolucion­ária dos negros norte-americanos na luta pelos direitos civis: contra os sabres argumentat­ivos, as baionetas do sofismo e o napalm da execração pública, oferecerem­os nosso zen-mutismo.

O esforço há de valer a pena. Quando o mundo estiver pegando fogo, quando a turma dos pró, dos contra e dos “os pró e os contra não entenderam nada, a questão não é ‘sobre isso’, é ‘sobre aquilo’, suas bestas!” estiverem se enfrentand­o em suas batalhas de Stalingrad­o cotidianas, nós sorriremos como quem (não) encontrou a verdade e flanaremos incólumes feito Jesus caminhando sobre as águas. Chupando um Chicabon.

Muitas opiniões aparecerão condenando os sem opinião —escapistas! Hedonistas!— mas seremos fortes

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Adams Carvalho

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