Folha de S.Paulo

Marcas de

Cinco anos após incêndio que afetou mais da metade da população da cidade, Santa Maria tenta fechar cicatrizes sem deixar que as 242 mortes, ainda impunes, tenham sido em vão

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DA ENVIADA A SANTA MARIA (RS)

Na tarde do próximo sábado (27), um corneteiro do Exército anunciará o toque de silêncio em homenagem aos mortos e sobreviven­tes do incêndio que marcou a cidade cinco anos antes.

Mas a noite será cheia de sons. Sinos das igrejas vão tocar, haverá corais e cantores e, enquanto familiares soltarem 242 balões brancos para lembrar os mortos, a corneta estará presente de novo.

A associação de pais e sobreviven­tes (AVTSM) vai dar também o pontapé inicial na construção de um memorial no lugar da boate Kiss.

O concurso público de projetos arquitetôn­icos, lançado pelo Instituto dos Advogados do Brasil, terá o vencedor conhecido no dia 10 de abril, mês em que será anunciada a demolição da boate.

“O objetivo é que não se esqueça de como a omissão e a ganância são terríveis”, diz o diretor jurídico da AVTSM, Paulo Carvalho, 67.

O especialis­ta em TI, que perdeu no desastre o filho Rafael, de 22 anos, é também quem acompanha mais de perto o processo judicial sobre o caso (veja quadro).

Em 1º de dezembro passado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reverteu a decisão que levava quatro réus ao Tribunal do Júri, por crimes dolosos contra a vida.

Recursos ao Superior Tribunal de Justiça vão agora alongar a espera dos pais por punição —nesse meio-tempo, três deles já morreram.

Carvalho teme que o crime prescreva sem punições —na hipótese mais favorável aos réus, daqui a três anos.

“É uma ferida aberta, essa dor que não encontra eco em ações da Justiça”, diz Maria Helena Pereira Franco, coordenado­ra do Laboratóri­o de Estudos e Intervençõ­es sobre o Luto da PUC-SP.

“Nenhuma punição devolveria meu filho. Mas devolveria nossa cidadania. Estão retirando nosso direito à justiça, na Kiss e em toda a sociedade”, diz Sérgio da Silva, presidente da AVTSM.

Para Franco, que há 30 anos atende pessoas enlutadas, a importânci­a de punições exemplares é a de reestabele­cer uma certa ordem na vida, dar a segurança de que erros têm consequênc­ias.

Santa Maria continua à espera desse desfecho, mas personagen­s centrais da história têm transforma­do sofrimento em realizaçõe­s. Uma delas tem lugar na praça central da cidade, onde uma tenda faz lembrar os 242 mortos no incêndio. Ali, pais, sobreviven­tes e amigos fazem vigílias antes diárias e hoje semanais.

Ligiane Righi da Silva, 48, principal organizado­ra dos eventos, criou com outras mães uma ONG que ajuda crianças carentes da cidade.

Ligiane teve a ideia de colocar as mães para tricotar: “Cada uma faz 20 quadrados, costura e arremata. Isso é importante porque mostra que tudo é resultado da união”.

Das agulhas saem mantas doadas a instituiçõ­es da cidade, e a atividade acabou sendo também uma terapia para as participan­tes. Trouxe ainda manifestaç­ões de apoio: moradores da cidade começaram a doar novelos de lã.

A solidaried­ade compensou críticas e ofensas aos pais.

“Se a gente chorava, criti- cavam porque não deixávamos nossos filhos descansare­m. Se ficávamos quietas, é que estávamos ali só para tomar chimarrão. Se ríamos, não dávamos valor à morte. E nos culpavam por termos deixado nossos filhos saírem à noite”, diz a doceira.

O que ocorre em Santa Maria é que, além do luto particular, há um luto público, observa a terapeuta Maria Helena Franco. Isso torna os pais suscetívei­s a julgamento­s, avaliações e olhares.

Por outro lado, diz ela, há no caso da boate Kiss um luto coletivo, que fortalece as pessoas. “Cria-se um sentido de união, apoio mútuo.” Segundo a prefeitura, mais da metade da população foi afetada pelo incêndio, e 4% tiveram perdas diretas.

O presidente da associação de pais diz ter dado uma “guinada de 180 graus” após se envolver com a entidade. “A perda era insuportáv­el; estava ficando doido.”

É uma dor duradoura porque não envolve apenas a memória do que se passou, diz Volnei Antonio Dassoler, psicanalis­ta da Secretaria de Saúde de Santa Maria: “Há o luto Mortos Local do potencial perdido, a formatura que não chegará, netos que não vão nascer”.

Dassoler afirma que, quando a definição da Justiça vier, o protagonis­mo político dos pais deve dar lugar a questões dos sobreviven­tes.

“Muitos deles estão no anonimato, porque falar é reviver sua tragédia. Seguem sua vida, mas alguns têm pesadelos, marcas centrais.” EQUILÍBRIO Angelica Sampaio, 25, sofreu com depressão e síndrome do pânico. “Não suportava lugares fechados, cheios de gente, nem ficar sozinha.”

A estudante de moda, que teve braços e peito queimados e sérios problemas respiratór­ios, frequentou apoios psicológic­os e psiquiátri­cos, mas reencontro­u seu equilíbrio na religião de seus pais. “Tive fé e fui melhorando.”

No caminho, ajudava também seu “anjo da guarda”, Jovani Brondani Rossi.

Hoje com 31 anos, Jovani foi um dos frequentad­ores que saíram da boate, mas voltaram para salvar os outros.

De dentro da Kiss ele tirou mais de 15 pessoas com vida. Uma delas era Angelica.

“Saber que ajudei não compensa as perdas, mas ameniza a dor”, diz ele. Ainda assim, houve dias de sofrimento enorme. “Passava na loja da Angelica para tomar um mate. Ver um sorriso ajuda.”

O comerciant­e só descobriu dias depois que entre as pessoas que salvou estava seu irmão, Delvani, hoje com 25 anos, que desmaiara por causa da fumaça e só voltou a si na calçada, em estado de choque. Costas, braços, mãos, garganta e pulmão queimados produziam dor imensa.

Em Porto Alegre, onde foi internado, passou um mês em coma e mais um em tratamento. Teve infecção, foi reanimado quatro vezes. Com 1,80 m, perdeu 20 kg. Ele diz que o que o salvou foi se agarrar no futuro. “Pensava sempre ‘daqui a um ano vou estar melhor’.”

Das mudanças que a experiênci­a trouxe para sua vida, a principal é profission­al. Antes interessad­o em agronomia, voltou-se para a área da saúde, cursou três semestres de fisioterap­ia e agora estuda para medicina.

“Quero trabalhar em atendiment­os de emergência.”

A mesma determinaç­ão tem Kelen Ferreira, que completa 25 anos em março. Antes de sofrer queimadura­s e ter o pé direito amputado, estava no terceiro semestre de terapia ocupaciona­l, mas tinha dúvida sobre a carreira.

Hoje, já formada, está convicta de que trabalhar com queimados e amputados é sua missão. “Aprendi a ter muita paciência e resiliênci­a, e isso ajuda na hora de tratar os pacientes.”

Kelen foi um dos 18 pacientes do pneumologi­sta do Hospital de Clínicas de Porto Alegre Hugo Goulart de Oliveira. Deles, 16 sobreviver­am, graças ao tratamento intensivo de limpeza dos pulmões.

Um legado positivo da tragédia são as várias pesquisas científica­s em áreas como medicina, psicologia, psiquiatri­a e fisioterap­ia.

Na esfera individual, a experiênci­a dolorosa também deixa frutos positivos. Alessandra Lopes Goelzer, 27, e Eduardo Augusto Kuntzer, 28, por exemplo, convidaram para padrinhos de sua filha Catarina os pais do amigo Ruan, que morreu na boate.

Colegas no curso de veterinári­a, os dois vinham de outra cidade e tinham nos pais de Ruan —Regis e Rosane Pendeza Callegaro— seu ponto de referência. “Eram como novos pais para a gente.”

O bebê, agora com um ano e oito meses, trouxe um sopro de alegria ao casal que perdeu seu filho único aos 20 anos. “Hoje eles falam mais com alegria. A memória claro que é triste e a dor nunca vai passar, mas estão melhores”, diz Alessandra.

“Não gosto de usar o verbo ‘superar’ para o processo de luto, porque ele não é um obstáculo a ser saltado. É uma experiênci­a dolorosa, mas é para ser vivido”, diz a especialis­ta Maria Helena Ferrão.

O psicanalis­ta Dassoler, que atende no projeto Acolhe, também substitui o verbo “superar” por “elaborar”.

Nos corpos dos habitantes de Santa Maria, homenagens ficaram marcadas como tatuagens com os nomes dos amigos, filhos e colegas perdidos.

Em 2015, o sobreviven­te Delvani também quis tatuar na perna algo que fosse representa­tivo. Desenhou sozinho a fênix que agora ocupa toda a coxa direita. (AESP)

 ?? Fotos Eduardo Anizelli/Folhapress ?? Salvo da morte pelo irmão, Delvani Rosso ficou 2 meses internado e passou por 4 reanimaçõe­s; a experiênci­a lhe fez mudar de carreira: presta vestibular para medicina e quer atender emergência­s
Fotos Eduardo Anizelli/Folhapress Salvo da morte pelo irmão, Delvani Rosso ficou 2 meses internado e passou por 4 reanimaçõe­s; a experiênci­a lhe fez mudar de carreira: presta vestibular para medicina e quer atender emergência­s

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