Encontrei cidade ainda tentando entender o que havia acontecido
No alto de um carro de som, um locutor lia nome a nome uma lista de jovens internados em um hospital. Em meio a milhares de pessoas que bloqueavam uma rua ali perto, era possível ouvir uma mãe, sentada na sombra de uma árvore, dizer baixinho enquanto chorava: “Não quero ficar sem a minha filha”.
Dez horas depois do início do incêndio na boate Kiss, quando a reportagem da Folha chegou a Santa Maria, a cidade ainda tentava entender o que havia acontecido.
O incêndio estava controlado desde o início da manhã, e os mortos já tinham sido retirados. Porém, diante da inevitável desorganização devido às proporções da tragédia, o reconhecimento dos corpos ainda não fora autorizado.
Atrás de informações, pais e amigos chegavam aos poucos à cidade, conhecida por receber estudantes universitários de todo o Estado.
Familiares se agarravam até a boatos para evitar a pior das notícias. Rodavam por hospitais da cidade —lotados para atender centenas de feridos— e falavam até em ir a municípios a mais de 100 km para vasculhar listas de internados na tentativa de encontrar com vida os desaparecidos.
Naquela ensolarada tarde, o epicentro da tragédia já não era o prédio da casa noturna, totalmente isolado, mas um complexo esportivo conhecido como “Farrezão”, para onde foram levados os corpos.
As ruas do entorno ficaram tomadas. Em um dos ginásios, familiares na arquibancada aguardavam ser chamados por um voluntário que, no sistema de som, ia aos poucos percorrendo o alfabeto: “Familiares de desaparecidos com nomes que começam com a letra ‘I’”, depois “J”...
No lado de fora, o vaivém de militares e de veículos do Exército, destacados para auxiliar na organização, davam um ar ainda mais calamitoso àquele cenário —as bases das Forças Armadas são uma das marcas da cidade gaúcha.
Era uma sucessão de pequenas cenas impactantes: o transporte e a preparação de dezenas e dezenas de caixões, um caminhão-frigorífico para conservar corpos, desmaios. Funerárias trabalhando em espaços improvisados com tapumes. Uma voluntária arrecadando tranquilizantes.
O ginásio principal abrigou um velório coletivo até a manhã seguinte. Jovens na faixa dos 20 anos, como a maioria dos mortos, eram a maior parte dos presentes. Com a comoção na cidade, centenas de moradores se voluntariaram para tarefas que iam de oferecer lanches até a distribuir abraços e palavras de apoio.
O domingo 27 de janeiro terminou sem que ao menos houvesse certeza sobre o número exato de mortos, revisado nos dias seguintes. FELIPE BÄCHTOLD
Folha