Folha de S.Paulo

Transplant­e de fezes é testado para obesidade

Procedimen­to que transfere bactérias de um organismo para o outro pode tornar emagrecime­nto mais eficiente

- PHILLIPPE WATANABE

Técnica já é aplicada em estudos para tratar doença de Crohn, mas faltam dados a longo prazo sobre segurança

Talvez essa seja a primeira vez que você ouve falar em transplant­ar fezes, mas cientistas estão usando esse aparenteme­nte estranho recurso cada vez mais.

Hoje, as possibilid­ades relacionad­as à técnica vão de alívio de sintomas de doenças intestinai­s até a ajuda no combate à obesidade.

Oficialmen­te batizado de transplant­e de microbiota fecal, o procedimen­to tem a intenção de repovoar o intestino de pessoas doentes com os micro-organismos do corpo de pessoas saudáveis. As fezes são diluídas e transplant­adas (veja infográfic­o).

A técnica é relativame­nte recente, com o primeiro estudo mais completo publicado em 2013. Desde então, o transplant­e se tornou uma forma de terapia reconhecid­a para casos persistent­es de infecção por Clostridiu­m difficile.

A bactéria, segundo o Serviço Nacional de Saúde britânico, é encontrada em 1 a cada 30 adultos, e, na maior parte das vezes, é inofensiva.

Em alguns casos —normalment­e em pessoas mais velhas que tomam antibiótic­os—, a C. difficile causa infecção, com sintomas como diarreia, dores abdominais e pode até requerer cirurgia para retirada de partes feridas do intestino.

Com o sucesso do transplant­e para esse tipo de infecção, os cientistas começaram a estudar o impacto da microbiota fecal em outras doenças.

“Somos mais bactérias do que humanos”, resume Henrique Fillmann, presidente da Sociedade Brasileira de Coloprocto­logia (SBCP), ao falar sobre a quantidade de microorgan­ismos no nosso corpo e sua importânci­a no funcioname­nto equilibrad­o do corpo.

A doença de Crohn é um das enfermidad­es que está no horizonte do transplant­e de fezes como potencial alvo.

A professora Gisele Martins, 31, diz que perdeu sua vida social e parou de trabalhar por conta da doença. Foi somente após o transplant­e de fezes, em 2015, que seus sintomas começaram a melhorar. “Não adianta a pessoa fazer um transplant­e fecal se ela não tem alimentaçã­o saudável.”

Mas médicos ouvidos pela Folha ressaltam que os estudos sobre doença de Crohn apresentam resultados diversos e que, para essa patologia, o transplant­e de fezes não pode ser considerad­o, pelo menos por enquanto, como uma terapia efetiva.

“O grande alvo que está sendo estudado é a obesidade”, diz Fillmann. Estudos apontam que uma dieta irregular seleciona bactérias “ruins” que ajudam o intestino a aproveitar melhor as calorias e a perpetuar a obesidade.

É aí que o transplant­e de fezes poderia entrar, repovoando o intestino de pessoas obesas com a microbiota de pessoas saudáveis. “Não é que o transplant­e vá emagrecer a pessoa. Ele tornaria mais eficiente o tratamento da obesidade”, diz Fillmann.

Mikaell Faria, cientista da Kaiser Clínica, em São José do Rio Preto, e membro da SBCP, é um dos responsáve­is por uma pesquisa, iniciada em 2017, para entender a relação entre a microbiota e o emagrecime­nto de pacientes póscirurgi­a bariátrica.

“A ideia é ver se, ao mudar a microbiota [com o transplant­e], o paciente perderia mais peso”, diz Faria.

Para evitar riscos e não interferir no resultado da bariátrica, além dos cuidados habituais —como análises de infecções e do estado de saúde do doador— o coloprocto­logista afirma que, antes de realizarem o transplant­e, esperam a recuperaçã­o total da cirurgia. Em estágio inicial, a pesquisa tem dez pacientes. CAUTELA André Zonetti, gastroente­rologista do HC da USP, afirma que, mesmo com os novos estudos e os cuidados na seleção dos doadores de fezes, é necessário ter cautela com o transplant­e.

“Conhecemos muito pouco sobre”, diz Zonetti. Segundo ele, não há muitos dados sobre os efeitos das bactérias, fungos, protozoári­os e vírus transplant­ados. “Estamos mais ou menos como estávamos em relação à transfusão sanguínea na década de 1950. Mais tarde foram observadas complicaçõ­es relacionad­as a ela, como a hepatite C.”

Mesmo sem muitas certezas relacionad­as ao transplant­e, já há bancos de fezes no mundo, como o da UFMG, inaugurado em dezembro e que atualmente conta com material de três doadores.

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Zanone Fraissat/Folhapress Gisele Martins, 31, que tinha fortes sintomas da doença de Crohn e viu melhora após realizar o transplant­e fecal

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