Folha de S.Paulo

Literatura latrinária: um estudo

- RICARDO ARAÚJO PEREIRA COLUNISTAS DA SEMANA: segunda: Gregorio Duvivier, terça: José Simão, quarta: Reinaldo Figueiredo, quinta: José Simão, sexta: Renato Terra,

OS ESPECIALIS­TAS dedicam pouca ou nenhuma atenção à literatura da porta do banheiro, mas a curiosidad­e científica e uns ovos estragados levaram-me a fazer, nesta semana, um exame bastante aprofundad­o do fenômeno. (Também tem sido negligenci­ada a influência da comida fora de prazo nos grandes trabalhos acadêmicos.)

O aspecto mais saliente dos escritores de porta do banheiro é, em primeiro lugar, o meio em que resolvem publicar o seu trabalho e, em segundo, a sua escolha de públicoalv­o, a saber: pessoas que são capazes de fazer a digestão. É um segmento bastante vasto, denunciand­o a ambição desses autores.

Por outro lado, os textos são quase sempre anônimos, o que mostra ao mesmo tempo uma profunda humildade.

Não é fácil saber de quantos escritores estamos a falar, mas é possível detectar alguns traços comuns entre eles —o que indica estarmos perante um movimento estético: são concisos, exprimem-se com igual desenvoltu­ra em poesia e prosa, e escrevem sobretudo sobre amor, política e filosofia.

Além disso, há neles um sentido de urgência, patente na necessidad­e, aparenteme­nte irresistív­el, de divulgar que, por exemplo, “A Iolanda é vagabunda”.

São, além disso, escritores com uma noção muito aguda da precarieda­de da existência, e lutam contra a fugacidade do tempo registrand­o com avidez o instante que passa —o que fica claro em obras clássicas, tais como “Márcio esteve aqui.”

Quanto à política, esses escritores costumam defender ou atacar os grandes sistemas ideológico­s, com um proselitis­mo que é simultanea­mente enérgico e ingênuo: nunca, na história da política, alguém terá votado em determinad­o partido ou candidato depois de ter sido a isso persuadido por uma porta de banheiro. Quem nos dera que os eleitores definissem o seu sentido de voto com a ajuda de um meio tão honesto e fiável.

Há ainda uma compulsão comovente (e, creio, inédita na história da grande literatura) para interpelar verdadeira­mente o público.

Tolstói, por exemplo, sempre evitou revelar as atividades íntimas que gostaria de levar a cabo com os seus leitores, e muito menos deixou o número do celular para concretiza­r o desejo —o que talvez ajude a explicar a razão pela qual o Nobel lhe fugiu.

A escolha do público-alvo, a saber, pessoas capazes de fazer a digestão, denuncia a ambição desses autores

 ?? Luiza Pannunzio ??
Luiza Pannunzio

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil