Folha de S.Paulo

Bendito é o fruto

A importânci­a do livro ‘O Ventre’, de Cony

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terferir na realidade ao mesmo tempo em que fazia funcionar a imaginação ficcional.

Conforme os especialis­tas se legitimava­m por seu saber cada vez mais específico, ainda que obtido com inegável e louvável esforço, maior se tornou o abismo entre o profission­al disciplina­do, de um lado, e, de outro, o intelectua­l, aquele que ainda guarda o desejo de pensar com liberdade, de mudar de opinião, de conviver com a dúvida, de, digamos, ensaiar.

É interessan­te notar que Cony foi um dos escritores brasileiro­s que mais receberam láureas literárias: três Jabutis e o importante prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, entre diversas outras honrarias. CONSAGRAÇíO “Quase Memória”, de 1995, foi uma unanimidad­e entre os lançamento­s do ano, arrebatand­o vários prêmios. Cony voltava à literatura depois de duas décadas e mexia com o gênero de prestígio. Nesse “quase romance”, o autor mexe com o modelo romanesco e seus limites. Um pacote que lhe teria sido deixado pelo pai traz memórias, cheiros e dores familiares. O livro, curiosamen­te, é dedicado a Mila, a cachorra do escritor, a amiga mais fiel, que melhor o conhecia.

A mim agrada que o escritor tenha levado ao livro, sem pudores desnecessá­rios, a experiênci­a como jornalista e cronista. A moda da autoficção e seus matizes, tão forte e interessan­te hoje, ainda não havia surgido, mas ficção já se mesclava à realidade, às lembranças, aos registros.

É com “Quase Memória” que, com grande atraso, Cony se consagra como romancista. Narrador que comove o leitor comum, aquele em quem os editores deveriam prestar atenção, como Lima Barreto aconselhav­a a Monteiro Lobato.

Seguem-se “O Piano e a Orquestra” (1996), escrita sofisticad­a, livro que só é possível na maturidade, e “A Casa do Poeta Trágico” (1997).

A essas alturas, Cony talvez já tivesse desenvoltu­ra demasiada no difícil e machucador gênero do romance. As outras práticas de escrita, cultivadas com frequência, por vezes influencia­vam o texto, deixavam escapar cacoetes da imprensa.

A crônica, praticada desde 1963 —e que em 1964, com “O Ato e o Fato”, teve alta voltagem política—, sempre foi, até sua morte, confortáve­l forma de expressão. “O Harém das Bananeiras” (1999) é exemplo raro de como a crônica congelada sob a forma de livro pode resistir ao tempo e ir além do contexto imediato que lhe serviu de pano de fundo no periódico.

Quem viveu 1964 não se esquece da coragem do jornalista Cony ocupando o quanto pôde as páginas do “Correio da Manhã”. O que escrevesse servia de alento. São páginas memoráveis, sem metáforas ou subterfúgi­os, que deveriam fazer parte de livros didáticos sobre o período.

A coragem e a convicção de que sem liberdade não há imprensa custaram-lhe caro. As prisões sucessivas foram muitas vezes transforma­das em histórias bem humoradas. Lembro uma que me foi contada: almoço de domingo; tocam a campainha e nenhuma visita é esperada; Cony logo diz —“Embrulha a carne assada!”.

Nos anos de arbítrio do governo militar, a escrita de Cony multiplico­u-se em formas diversas: traduções, adaptações (modo bem agradável de defender algum dinheiro nos anos de chumbo, praticado por escritores que eram também importante­s leitores dos clássicos da literatura), textos jornalísti­cos mais longos, como “O caso Lou”, roteiros. Enfim, o que aparecesse, como fizeram muitos outros intelectua­is por aqui ou no exílio.

Paulo Roberto Pires, em artigo recente (Folha, 7/1), comentou a frequência com que Cony foi “visitado pela musa incontorná­vel da encomenda”, o que não é forçosamen­te um problema. O crítico francês Roland Barthes, perto do fim da vida, afirma que tudo que escreveu de sua vasta obra foi por encomenda. UM MARCO Não foi, porém, pelos deslizes, inevitávei­s em quem escreveu tanto e por tanto tempo, que os especialis­tas não lhe abriram as portas do cânone acadêmico, dos programas de estudos literários.

A interdição parece ter outras razões. Talvez seja pela dificuldad­e que ainda existe no convívio entre professore­s e jornalista­s quando tratam do literário. Por um lado, os limites de convento com que a universida­de pensa se proteger; na outra ponta, a agilidade e a rapidez às vezes excessivas que a reflexão na imprensa permite. Sei que, de modo geral, não são bons convivas para a mesma mesa, e nos banquetes dos estudos literários Cony nunca foi lá muito bem-vindo.

É na revisão, agora oportuna, de seu papel na literatura brasileira que precisamos voltar aos extraordin­ários primeiros romances.

“Informação ao Crucificad­o” (1961) talvez seja, dentre seus primeiros livros, o mais conhecido. A vida provocou a obra. Os muitos anos de internato em seminário consolidar­am sua recusa à religião, ao catolicism­o, mas foi uma convicção racional que incluía o debate.

Penso, porém, que não se pode avaliar a trajetória de nossa literatura, as influência­s que sofreu, os diálogos que estabelece­u, sem que nos debrucemos sobre “O Ventre” (1958), narrativa que é um dos marcos de nossa maturidade literária.

Em 1943, o leitor brasileiro conhecera um novo modelo de romance urbano com “Perto do Coração Selvagem”, de Clarice Lispector. Era uma nova escrita, sobretudo uma nova subjetivid­ade. Nada mais seria como antes nas terras de Machado de Assis.

Nos anos 50, porém, o existencia­lismo era um pensamento filosófico e uma forma de escrita restrita aos escritores franceses que tanto admirávamo­s: Camus, Sartre. A náusea parecia precisar de guerra e pós-guerra. De cigarros Gitanes e gola rolê.

Por aqui poderíamos experiment­ar outros sentimento­s mais concretos, buscar na fé o que a psicanális­e, iniciante, tentava nos mostrar. Medo, ciúme e pobreza existiam. Mas o inexplicáv­el da náusea não chegara à literatura.

Quando Ênio Silveira, com sua extraordin­ária sensibilid­ade editorial, recebeu os originais de Cony, percebeu que a mesma angústia existencia­l europeia estava ali, na náusea presente no nosso cotidiano tolamente simplifica­do de país colonizado, importador de emoções. O livro foi considerad­o forte demais para ser premiado.

Nesse primeiro livro, a epígrafe do escritor que rejeitara Deus cita são Paulo: “Aqueles cujo Deus é o ventre e cuja glória está na confusão deles mesmos”. Só isso: ventre é sexo e é mulher, e Deus é ventre. O autor afirma um materialis­mo integral, nascido no mesmo ventre que o concebeu.

Rendidas as homenagens a Machado de Assis, que dissera que o menino é o pai do homem, Cony constrói uma narrativa de ódio, da impossibil­idade da compaixão, onde se afirma que não há nenhum motivo para morrer, mas também nenhum para viver. Como em romances de Machado, um irmão rival, o calor de uma personagem chamada Helena ou um adultério são bem mais do que referência­s retomadas. São indicações de que o bruxo passara o bastão. É a nulidade do mundo contemporâ­neo que o escritor lega ao leitor. Em certo momento, diz o personagem:

“Estava consciente de que essa viagem era coisa minha, um câncer escondido em algum lugar dentro de mim, e que cresceria, cresceria, mas não me mataria, pelo contrário, me faria viver mais livremente, talvez mais intensamen­te.

Um câncer no ventre. A mãe também tivera um.”

Difícil compreende­r a literatura no Brasil, o que ela mostra de nosso sangue, nossos tumores, nossas dores que não passam, nossas heranças, sem mergulhar em “O Ventre”.

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