Folha de S.Paulo

Em Israel, futebol promove coexistênc­ia

Projeto da ONG Gol da Igualdade prevê partidas mistas entre crianças judias e árabes como meio de distender relações

- DANIELA KRESCH Crianças judias e árabes jogam partida de futebol em time misto, projeto da Gol de Igualdade, em Jerusalém (Israel)

Ideia partiu do brasileiro Gabriel Holzhacker a partir de experiênci­a na Olimpíada no Rio FOLHA

Com uniformes coloridos, as crianças chegam correndo ao gramado artificial do campo de treinament­o do clube Beitar Jerusalém, da primeira divisão do futebol israelense. O frio de janeiro não abala as 200 crianças de 10 a 12 anos, de 12 escolas da região, que querem jogar bola e, quem sabe, levantar o troféu de campeão no final do dia.

O campeonato foi promovido pela ONG israelense “Gol da Igualdade”, que trabalha com crianças de baixa renda para difundir valores de respeito e tolerância por meio do futebol.

Em Jerusalém, há um objetivo a mais: melhorar a convivênci­a entre árabes e judeus numa cidade virtualmen­te dividida, onde a realidade de conflito entre israelense­s e palestinos causa tensão constante.

Para fomentar essa coexistênc­ia, a ONG decidiu, pela primeira vez, criar times mistos entre crianças árabes e judias no campeonato de 18 de janeiro. As quatro equipes --com jogadores de quatro escolas de Jerusalém, duas judias e duas árabes-- competiram contra equipes “não mistas”, de escolas locais. Jogaram bem, mas não subiram no pódio. A experiênci­a alegrou crianças e treinadore­s.

“Não importa com quem jogamos, o importante é jogar!”, disse à Folha o atacante Muhammad Anan, 11, do bairro árabe de Bait Safafa, de Jerusalém Oriental, que jogou com alunos da escola judaica do bairro de Bait Vagan. “Às vezes, quando tomamos um gol, a gente briga. Mas isso é normal no futebol.”

“No começo não gostei da ideia porque pensei que ia ser difícil”, corroborou o goleiroEli­á Ben Gur, 11, da escola de Bait Vagan. “Mas agora está legal. Podemos ser amigos. Se eles soubessem um pouco de hebraico, seria melhor”.

A língua é realmente uma barreira. Em Jerusalém, 34% da população de 900 mil pessoas é formada por palestinos que, em geral, moram na parte oriental da cidade, anexada por Israel em 1967. A grande maioria tem status de “residente permanente”. Não são cidadãos israelense­s, mas gozam de educação e seguro de saúde gratuitos e podem trabalhar e circular livremente por Israel.

Apesar dessa convivênci­a geográfica, a maioria das crianças árabes estuda em escolas com currículo palestino, nas quais o hebraico não é ensinado. A maioria das crianças judias tampouco aprende árabe, disciplina obrigatóri­a só a partir do secundário.

Segundo o brasileiro Gabriel Holzhacker, “gol”, no entanto, é uma palavra universal. Vice-diretor da ONG, Holzhacker, que chegou a Israel aos 11 anos, se emocionou ao ver crianças dos dois lados de Jerusalém torcendo juntas num mesmo time durante o torneio da semana passada.

Foi ele quem teve a ideia de formar equipes mistas em Jerusalém. O pensamento surgiu nas Olimpíadas do Rio, em 2016, quando a “Gol da Igualdade” foi convidada pela CBF, a Federação Paulista de Futebol e instituiçõ­es judaicas e árabes paulistas para levar ao Brasil 22 crianças de Jerusalém --11 judias e 11 árabes-- para participar de eventos beneficent­es. Durante a viagem, ele notou que as crianças se uniram além das barreiras da etnia e da língua.

“A certo ponto, começaram a joga bola entre si, sem times. Se misturaram. Não teve judeus contra árabes. Foi lindo porque foi algo totalmente autêntico”, conta. “Até hoje, as crianças jogavam nas competiçõe­s da ONG representa­ndo suas escolas. Com essa nova iniciativa, estamos tentando que as crianças se conheçam, se respeitem e criem laços de amizade”.

O fundador da ONG, o economista israelense Liran Girassi, começou o projeto em 2009 com outros estudantes na Universida­de Hebraica de Jerusalém. Fanáticos por futebol, o sonho era aplicar o esporte como um instrument­o de transforma­ção social. Hoje, a ONG tem 70 funcionári­os trabalhand­o com 220 escolas em todo o país.

São mais de 3.500 crianças de 9 a 16 anos da periferia de Israel, entre elas, judeus religiosos e seculares, árabes muçulmanos e cristãos, drusos e beduínos. Os pais dos alunos selecionad­os pagam 300 shekels (R$ 300).

“Misturar as crianças em times mistos não era parte do objetivo inicial. Mas, lentamente, surgiu a oportunida­de de unir os jogadores em torneios”, diz Gerassi.”Em casa, as crianças vem os outros como inimigos. Mas, no campo, percebem que são iguais a ele, se alegram com gols, ajudam quem caiu em campo, dão passes. Jerusalém precisa de iniciativa­s assim”.

O educador Shadi Jaber, diretor da ONG “Abrindo o futuro”, em Jerusalém Oriental, concorda: “As crianças judias e árabes não têm muita oportunida­de de se encontrar, no dia a dia, em Jerusalém. As novas gerações precisam se conhecer enquanto pessoas, não como ‘soldados’ versus ‘jogadores de pedras’. No bairro onde moro, as crianças nunca entrariam em contato com israelense­s se não fosse a ‘Gol da Igualdade’. Hoje, elas contam os dias para as competiçõe­s”.

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Daniela Feldman/Folhapress
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O idealizado­r do projeto, o brasileiro Gabriel Holzhacker

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