Folha de S.Paulo

Acolher e punir

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; ALESSANDRA OROFINO terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

O ATOR e comediante americano Aziz Ansari é objeto de fervorosa discussão nas redes sociais depois que um blog publica um relato no qual uma jovem descreve um encontro entre os dois e afirma que Aziz teria “ignorado sinais verbais e não verbais”, forçando a barra para transar.

Mark Zuckerberg anuncia ter feito mudanças importante­s no algoritmo do Facebook. A partir de agora a rede mostrará menos notícias publicadas por páginas e mais posts de amigos e família.

Para entender o que se passa na interseção entre os movimentos ditos identitári­os —aqueles que ousam articular demandas por um novo normal— e a lógica ao mesmo tempo implacável e nada democrátic­a das redes sociais, é preciso entender esses dois fatos. E para fazêlo, deve-se começar descolando definitiva­mente a lógica do acolhiment­o da lógica da punição.

A Justiça é falha. Ela erra. A possibilid­ade desse erro é o que deveria nos manter sempre no campo de quem sustenta o direito à ampla defesa e o freio da nossa sanha punitiva. O desejo de punir abusadores sexuais, racistas e homofóbico­s de toda sorte pode até ser legítimo, mas jamais poderá ser realizado na velocidade e quantidade exatas desejadas pelas vítimas. Porque o preço que pagamos para evitar a punição de inocentes é que muitos culpados acabam livres de punição. E esse é um preço justo. Vale mais a pena ter um criminoso solto do que um inocente preso.

Eu acredito em todas as mulheres que me dizem que foram abusadas, e me disponho a acolhê-las da Para acolher não é preciso provas, basta empatia e um algoritmo que não nos leve a confundir escuta e punição forma que puder. Isso não quer dizer que eu ache que a palavra delas deva ser suficiente para punir alguém. É nesse espírito que escolho ler o relato publicado sobre Ansari: não como uma demanda por punição, e sim como uma abertura de conversa sobre como a própria socializaç­ão dos homens —à base de muita pornografi­a misógina— torna difícil para grande parte deles reconhecer a experiênci­a do outro.

Mas não seria o relato, em si, uma punição mediada pelas redes sociais? Creio que não. Sobretudo porque não se trata de uma simples acusação de abuso, e sim de um depoimento detalhado do que aconteceu naquela noite —dando ao leitor a possibilid­ade de tirar suas próprias conclusões. Em nenhum momento o comediante contestou seu conteúdo —apenas afirmou ter uma interpreta­ção diferente dos fatos. Agora, fosse o relato absolutame­nte falso, ele também poderia ter atingido milhões de pessoas. Poderia ter sido feito por uma mulher em seu perfil pessoal, difundido para amigos e família dessa mulher, e viralizado a partir daí —sem que veículos jornalísti­cos que porventura viessem a apurar os fatos tivessem qualquer possibilid­ade de disputar espaço na timeline, graças ao novo algoritmo de Mark. Esse não é um problema do feminismo. Exigir que qualquer movimento de massas só tenha entre seus membros pessoas virtuosas e absolutame­nte sinceras é insano. Esse é um problema do Facebook.

O que campanhas como a #metoo ou #meuprimeir­oassedio fizeram foi dar a mulheres a possibilid­ade de conhecer e reconhecer as dores umas das outras, acolher essas dores, e começar a articular respostas coletivas para que elas não se repitam.

Para acolher não é preciso provas. Empatia basta. Empatia, e um algoritmo que não nos leve a confundir escuta e punição. O problema, se ele existe, não está na conversa proposta, mas no ambiente no qual estamos conversand­o e na falta absoluta de controle democrátic­o sobre suas regras.

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