Folha de S.Paulo

Lula, 2ª instância

TRF-4 tem o desafio de julgar ex-presidente em meio a uma politizaçã­o descabida do caso; democracia não está em jogo, nem o combate à corrupção

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A esta altura dos acontecime­ntos, seria ingenuidad­e pedir equilíbrio, comediment­o ou tolerância aos grupos mobilizado­s em torno do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre.

Ainda que natural em alguma medida, dadas as dimensões do personagem, a politizaçã­o do processo rompeu os limites do razoável —com o impulso decisivo do próprio réu, claro, mas não só dele.

Sentenciad­o em primeira instância a nove anos e seis meses de prisão, por corrupção e lavagem de dinheiro, Lula tem todo o direito de se dizer inocente e criticar a decisão da Justiça. Sua pregação, porém, é de outra natureza.

O líder petista, que misturou a defesa de sua biografia e a pretensão de candidatar-se novamente à Presidênci­a, insufla a militância com a tese tresloucad­a de que é vítima de uma conspiraçã­o tramada pelas instituiçõ­es jurídicopo­liciais e pela imprensa.

Aliados equiparam a eventual inelegibil­idade a um “golpe”, associando-a, por meio do surrado artifício retórico, ao impeachmen­t de Dilma Rousseff. Chega-se, assim, à antessala da incitação ao confronto —e a cúpula do PT, a começar pela presidente da sigla, não mostra preocupaçã­o em evitar o tom beligerant­e.

Do lado oposto, há decerto um sentimento antilulist­a, por vezes radicaliza­do, que se fortaleceu nos anos de desastre econômico e investigaç­ões da Lava Jato.

Ademais, ampla parcela da opinião pública, movida por justa indignação com os desmandos, pede punições severas e imediatas aos políticos sob suspeita, nem sempre com a devida atenção a trâmites jurídicos e garantias legais.

Seja qual for a decisão do TRF4, resta esperar que o tempo depure o evento da dramaticid­ade hoje exacerbada. Não está em jogo a democracia do país, como querem uns, nem o combate à corrupção na política, como temem outros.

A ação referente ao famigerado apartament­o em Guarujá envolve, sem dúvida, boa dose de complexida­de na interpreta­ção das provas colhidas. O processo, não por acaso, passa por um segundo exame, que não será o último.

Se as somas do caso não parecem vultosas diante dos desvios bilionário­s na Petrobras, o ex-presidente tampouco encena com credibilid­ade o papel de vítima. Sobram evidências de que suas relações com as grandes empreiteir­as feriram, na hipótese mais branda, a ética republican­a.

Ainda mais inegável é o gigantesco esquema criminoso que operou em seu governo —e desafia a credulidad­e imaginar que tudo se passava sem o conhecimen­to do chefe do partido e do Executivo.

Réu em outra meia dúzia de ações, Lula conta com a intenção de voto de um terço dos eleitores, o que o torna, absolvido ou não, ator central na disputa pelo Planalto. Nem isso nem a preferênci­a dos que querem vê-lo preso afetam, porém, a legitimida­de da sentença que se aguarda nesta quarta (24).

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