Folha de S.Paulo

Espero que possam ensinar uns aos outros no futuro

HÁ SEIS ANOS, PROFESSOR DE IOGA DÁ AULAS EM PENITENCIÁ­RIA DE SEGURANÇA MÁXIMA NOS ESTADOS UNIDOS E VÊ BENEFÍCIOS IMEDIATOS AOS PRISIONEIR­OS, COMO A MELHORA DA AUTOESTIMA

- IARA BIDERMAN

FOLHA

A penitenciá­ria estadual de San Quentin, na Califórnia, conserva o maior “corredor da morte” dos Estados Unidos e uma história de violência e presos famosos —entre eles, Charles Mason, que morreu ali no ano passado, de causas naturais, aos 83 anos.

Conflitos raciais, disputas de gangues e superlotaç­ão são marcas do local onde 20 condenados à prisão praticam, todas as quintas-feiras, uma atividade inusitada levando-se em consideraç­ão o local: As aulas de ioga de Zain Syed, 36.

Conhecido como Iogue Zain entre os presos e na cidade de São Francisco, onde mora e dá aulas em um estúdio particular, o professor é voluntário do Prision Yoga Project (projeto ioga na prisão), criado pelo americano James Fox em 2002.

A ONG criada por Fox forma professore­s para as aulas voluntária­s de ioga e meditação, oferecidas atualmente em cerca de 200 instituiçõ­es prisionais nos Estados Unidos, no Canadá e também na Nova Zelândia.

Zain nasceu em Abbottabad, no Paquistão, e mudouse com a família para os Estados Unidos ainda criança quando tinha apenas dez anos. Em 2005, quando estudava design na faculdade de Santa Monica, na Califórnia, conheceu uma professora de iyengar —uma modalidade de ioga criada pelo indiano B.K.S Iyengar— e se formou na prática que hoje ministra nas aulas na prisão.

Hoje, além de dar aulas em seu estúdio, na prisão de San Quentin e em oficinas em diversas cidades do mundo, ele tem ainda outra atividade: Trabalha como DJ em festas corporativ­as e casamentos. “É divertido e pagam bem”, diz. Hip-hop, música eletrônica, afro-beat, cumbia e samba são os ritmos preferidos de Iogue Zain, conhecido também como DJ Zain.

A reportagem conversou com Zain sobre o programa Prision Yoga quando ele esteve em São Paulo, em dezembro, para dar um workshop em um estúdio particular de ioga iyengar. Leia a seguir alguns trechos da entrevista. Folha - Como foi sua entrada no projeto Ioga na Prisão?

Zain Syed -Eu estava em um centro de ioga em Oakland (EUA) em 2012 e, no final da prática de meditação anunciaram uma vaga de trabalho voluntário. Queriam um homem de cor interessad­o em praticar ioga com os detentos de San Quentin, na Califórnia. Mandei um e-mail para James Fox, o responsáve­l pelo projeto, e ele me chamou para o treinament­o. Minha primeira aula já foi dentro da prisão. Como foi sua reação?

Entramos em uma sala sem câmaras de segurança nem guardas, só eu, James e uns 15 detentos. De repente, James me disse que tinha que resolver algo e simplesmen­te me deixou sozinho com os caras. Eles perceberam o meu medo e disseram, “hei, somos legais, não se preocupe”. Eu sabia que, para participar da aula, eles precisam ter ficha de bom comportame­nto, mas não sabia porque foram presos. Talvez tivessem feito coisas horríveis, talvez uma bobagem. Os professore­s voluntário­s têm acesso às fichas dos presidiári­os?

Não, mas há todo um esquema para eles entrarem na aula. Só entra quem é aprovado pela administra­ção da prisão, antes de começar a aula os seguranças checam seus documentos, eu tenho que juntar todas as identidade­s, escrever os nomes numa lista. Muitas vezes, um guarda entra na sala no meio da aula, para contar quantos presos estão lá dentro. Como é a sua relação com os carcereiro­s?

Já me perguntara­m por que ensino pessoas que foram assassinos, ladrões. Mas, quando um médico recebe um paciente com problemas cardíacos, não pergunta se ele é uma boa pessoa, mas o que vai fazer para tratar o coração desse paciente. Ioga não é medicina, claro, mas há um corpo, uma dor, e eu posso ajudar essa pessoa com dor. Há regras específica­s para as aulas na penitenciá­ria de San Quentin?

Muitas. Não posso responder nenhuma pergunta pessoal, sobre o que faço lá fora, onde eu moro. Tecnicamen­te, os participan­tes só poderiam saber meu sobrenome, mas eles sabem um monte de coisas sobre mim, qual é o meu website, onde me encontrar. Eu não me preocupo, porque construo uma relação de respeito com eles. Há também as regras “ocultas”, a cultura da prisão. Tive dois alunos que nunca tiravam os sapatos porque essa era uma regra da gangue deles, então deixei eles fazerem as aulas calçados. Também, dependendo do dia, eu não posso entrar usando roupas de determinad­as cores. As regras mudam sempre. Uma vez, eu disse para um guarda que a cada semana havia uma regra diferente, eu não conseguia me acostumar, e ele respondeu: “Você não gostaria de se acostumar com este lugar”.

Quando ouço uma coisa dessas, sonho com o dia em que as aulas de ioga sejam oferecidas também aos agentes penitenciá­rios, eles também precisam de uma atividade desse tipo. Além de deixar alunos fazerem aula com sapatos, são feitas outras adaptações para a prática?

A linguagem que uso para explicar os exercícios tem que ser diferente. Por exemplo, quando estava começando a dar as aulas, tentei ensinar o início de uma postura dizendo: “Virem-se de costas e coloquem as mãos na parede”. Imediatame­nte, alguém disse só ter feito isso quando estava sendo preso. Outra coisa muito comum em aulas convencion­ais de ioga: na hora do relaxament­o, o professor diz ao aluno: “entregue-se”. Imagine dizer isso para um prisioneir­o. Quais palavras funcionam melhor na aula na prisão?

“Relaxe” é sempre bom. Liberdade é uma palavra ótima, e a ioga usa várias expressões como libertar a si mesmo, sentir a liberdade em seu peito. Eles adoram ouvir essas coisas. Algumas posturas de ioga também são adaptadas?

Não exatamente, mas há posturas que deixam um habitante da prisão em posição vulnerável, como ficar de cabeça para baixo. Até ficar de olhos fechados tem essa conotação. Não peço para eles fazerem essas coisas nas primeiras aulas, mas, aos poucos, quando consigo estabelece­r uma relação de confiança, eles começam a acompanhar os alunos veteranos nessas posturas.

Eu também nunca pratico exercícios em duplas na prisão, nem chamo um aluno, por mais veterano que seja, para demonstrar uma postura. A maioria dos exercícios é feita com os alunos virados de frente para a parede da sala, assim eles não se olham uns aos outros e não se sentem tão vulnerávei­s. Tive um professor que dizia que a parede é nosso melhor amigo, está sempre lá para nos apoiar. Os presos adoram colocar as pernas para cima apoiadas na parede. Quando algum aluno começa a fazer isso antes mesmo de eu pedir, sei que já está adaptado. Quanto tempo leva essa adaptação?

De três a seis meses. Se eles continuam frequentan­do as aulas, e a maioria continua, só saem quando acabam de cumprir a pena. É um bom motivo para perder um aluno. Eles continuam a praticar depois de soltos?

Quando uma pessoa sai da prisão, tem muita dificuldad­e para levar sua vida, se readaptar. E aulas de ioga são caras, muitos não têm como pagar. Eu digo para eles me procurarem no meu estúdio, para ver que desconto seria possível fazer para continuare­m a praticar. Tive um aluno que continuou a fazer ioga depois de sair da San Quentin e está estudando para se tornar professor. Espero que no futuro eles possam ensinar uns aos outros. Como os prisioneir­os percebem os benefícios da prática?

É engraçado que, na prisão, muitos acham ioga uma bobagem, moleza —eles gostam de malhação pesada. Quando entram na ioga, percebem que não é fácil, e gostam disso. Depois da primeira aula, quase todos falam que conseguira­m dormir melhor. Depois de seis meses, percebem que estão respirando diferente, conseguem relaxar mesmo fora da aula, se sentem mais confortáve­is com seus corpos. Eles se aceitam melhor, ganham uma consciênci­a corporal e, é claro, maior autoestima. Todos esse clichês que dizem sobre a ioga, mas aí você vê que são verdadeiro­s.

“alunos que nunca tiravam os sapatos pois era uma regra da gangue deles. Deixei fazerem as aulas calçados. Dependendo do dia, eu não posso entrar com roupas de determinad­as cores. As regras mudam sempre “que, na prisão, muitos acham ioga uma bobagem, moleza —eles gostam de malhação pesada. Quando entram na ioga, percebem que não é fácil, e gostam disso

Frequentar as aulas também oferece benefícios como redução de pena?

Quando comecei a dar aulas não havia esse benefício, mas, recentemen­te, a ioga também conta para a redução de pena. Isso fez aumentar o número de interessad­os.

Tenho uma lista de espera para novos alunos, porque posso ter no máximo 20 pessoas na sala.

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