Folha de S.Paulo

EUA massacram centenas de civis no Vietnã

Vilarejo de My Lai foi erroneamen­te identifica­do como reduto vietcongue; número de mortos pode chegar a 504

- RODRIGO VIZEU acervo.folha.com.br

Em um ataque que pretendia neutraliza­r um suposto reduto de guerrilhei­ros vietcongue­s, o Exército americano matou neste sábado (16) centenas de civis vietnamita­s, incluindo mulheres, idosos e crianças, em uma área rural do Vietnã do Sul, a cerca de 700 km ao norte de Saigon.

O número de mortos pode chegar a 504. O massacre é o maior da história das Forças Armadas dos EUA.

Em muitos casos, os soldados enfileirar­am os locais e os lançaram em valas antes de matá-los. Houve tortura e estupros. Habitações foram destruídas; animais, mortos; e poços d’água, contaminad­os.

O massacre não foi maior devido à intervençã­o de um piloto de helicópter­o americano contra seus próprios colegas, em favor dos civis.

A carnificin­a durou três horas e meia e se concentrou em My Lai, uma das partes do vilarejo de Son My, próximo ao litoral sul-vietnamita.

O ocorrido se choca com os princípios da Convenção de Genebra, dos quais os EUA são signatário­s, que exigem tratamento humano de não combatente­s. O regulament­o do Exército prevê punição de comandante­s de tropas envolvidas em atrocidade­s.

Tamanho número de mortos em tempo tão exíguo só encontra paralelo recente na Segunda Guerra Mundial (1939-45), na Guerra da Coreia (1950-53) e no próprio Vietnã —mas em atos praticados, até agora, pelas tropas comunistas ou, do lado da aliança liderada pelos EUA, pelas forças da Coreia do Sul.

O ataque tem potencial de compromete­r o apoio da opinião pública dos Estados Unidos à guerra no Vietnã, conflito que se arrasta desde a década passada, com expressivo aumento da presença americana nos últimos anos em apoio ao sul capitalist­a.

Ainda sem vitória definitiva no horizonte, as tropas enviadas por Washington têm penado mais do que o imaginado diante do Exército do Vietnã do Norte comunista e dos guerrilhei­ros vietcongue­s no sul.

A situação se agravou a partir do último dia 30 de janeiro, quando norte-vietnamita­s e vietcongue­s lançaram ofensiva sobre o sul incluindo Saigon. Inicialmen­te surpreendi­dos, os EUA e seus aliados têm recuperado terreno.

Foi nesse contexto de busca de represália que tropas integrante­s da 23ª Divisão de Infantaria do Exército dos EUA,

a Americal Division, chegaram a My Lai. Apelidados de “guerreiros da selva”, os membros da divisão estão sob o comando do major-general Samuel Koster, em ascensão nas Forças Armadas.

O massacre teve à frente um dos subgrupos da divisão, a companhia Charlie, chefiada pelocapitã­oErnestMed­ina.

No Vietnã desde o fim do ano passado, a Charlie reunia até My Lai 38 baixas, com 5 mortos, diante de ataques surpresa dos vietcongue­s e de explosão de minas.

Seus membros se frustravam com a falta de combate direto contra um inimigo fugidio —após sua ofensiva perder força, os guerrilhei­ros voltaram à tática de atacar pontualmen­te e se esconder.

Além disso, o clima de desconfian­ça entre americanos e civis sul-vietnamita­s é mútuo. Os primeiros veem simpatia pró-vietcongue­s nos segundos, que sofrem com destruiçõe­s e violências cometidas pelas tropas dos EUA.

Na véspera do ataque —e após um funeral de um militar americano— o capitão Medina disse a seus subordinad­os que a batalha do dia se-

O massacre foi inicialmen­te noticiado como uma bem-sucedida batalha em que foram mortos 128 guerrilhei­ros. O caso foi acobertado em diversas instâncias do Estado americano por mais de um ano, até ser revelado em novembro de 1969 pelo jornalista Seymour Hersh, que venceu o Prêmio Pulitzer

Hoje Ho Chi Mihn, era então capital do Vietnã do Sul

O recorde nunca foi quebrado

Embora derrotada, a ofensiva do Tet contribuiu para que 1968 fosse o ano mais letal da guerra para as tropas americanas e represento­u uma virada do conflito junto à opinião pública dos EUA, que passou a questionar as chances de vitória e o propósito da permanênci­a do país na guerra do sudeste asiático

Criada em 1942 na 2ª Guerra, foi desativada em 1971 guinte prometia ser dura, contra um inimigo bem protegido e numericame­nte superior. Eram prováveis muitas baixas do lado dos EUA, disse. Ordenou que a área de My Lai fosse vasculhada, e o vilarejo, destruído.

Segundo alguns dos comandados, Medina teria especifica­do que todos os vietnamita­s encontrado­s deveriam ser mortos. Ele nega ter dado tal ordem e rechaça testemunho­s de que participou pessoalmen­te da matança.

A escolha da área de ataque se baseou em informação incorreta do setor de inteligênc­ia de que ali estava refugiado o 48º Batalhão da Frente de Libertação Nacional, nome oficial dos vietcongue­s. Na verdade, o batalhão estava escondido em uma região montanhosa a 65 km dali.

Em outro erro de informação, vindo da CIA, o Exército concluíra que os vietnamita­s presentes em My Lai que não fossem vietcongue­s deixariam a aldeia até as 7h em direção a um mercado. Quem ficasse era suspeito de simpatizar com os guerrilhei­ros.

Todas essas premissas basearam os planos de ataque do tenente-coronel Frank Barker, superior de Medina.

Para o soldado Charles Gruver, o objetivo estava claro: “Entrar e destruir a coisa toda, mulheres, crianças. Eliminar, incendiar o vilarejo. Tudo que fosse vivo. Apenas matar, exterminar”. CARNIFICIN­A Por volta das 7h30, a artilharia iniciou o ataque. À distância, o coronel Oran Henderson, chefe da 11ª Brigada de Infantaria, observou sem preocupaçõ­es com vítimas civis.

Há relatos de tiros esparsos vietnamita­s disparados durante o desembarqu­e da infantaria, mas no geral a chegada dos soldados foi tranquila, ao contrário do esperado. Testemunha­s locais disseram que os vietcongue­s que estavam no vilarejo foram embora antes do ataque.

Ao chegar, os americanos notaram que não se confirmara a previsão de que os civis estariam ausentes. Muitos faziam o desjejum. Soldados miraram então em quem estava ali, mesmo sem perfil militar. Famílias foram executadas ao deixar esconderij­os ou explodidas dentro deles.

Veterano da 2ª Guerra, foi acusado de acobertar o massacre, mas caso foi encerrado. Teve patente rebaixada e se aposentou em 1973. Morreu em 2006

Absolvido em corte marcial em 1971, comemorou manifestan­do “fé na Justiça militar”. Deixou o Exército pouco depois. Tem hoje 81 anos

Morto em uma queda de helicópter­o em jun.1968, foi postumamen­te condecorad­o pelo Exército

Em depoimento à comissão de investigaç­ão, em 1970, e a reportagem do jornal Sunday Oklahoman, em 1972

“Foi uma carnificin­a completa”, relatou o fotógrafo do Exército Ronald Haeberle, que registrou o ataque. Também acompanhou a ação o repórter oficial Jay Roberts.

Uma mulher foi metralhada com um bebê no colo. Meninos foram mortos ao pedir comida a soldados. Um militar tentou forçar uma mulher a fazer sexo oral enquanto apontava a arma para o filho dela de quatro anos. “Foram tantas pessoas mortas que é difícil lembrar como exatamente algumas delas morreram”, contou o soldado Harry Stanley.

Papel crucial na matança teve o tenente William Calley,

à frente do mais violento pelotão a adentrar My Lai.

Subordinad­os relataram as ordens de Calley para que civis, inclusive crianças, fossem mortos, tratando com agressivid­ade os soldados que resistiram a participar.

“Se ficarmos no Vietnã mais dez anos, se seu filho for

Acusado de abandono do dever por não ter investigad­o o massacre, foi absolvido em 1971. Em depoimento, disse entender que My Lai era um complexo altamente protegido para abrigar vietcongue­s, não havendo limites para efeitos colaterais. Aposentou-se em 1974. Morreu em 1998

Entregou as fotos ao jornal The Plain Dealer, que, contra pressões do governo, publicou-as em 20.nov.1969. Mais registros foram publicados na revista Life. Investigad­o por acobertame­nto, disse não ter repassado as imagens a superiores por temor de que fossem destruídas morto por esses bebês, vocês vão chorar para mim: ‘Por que você não matou esses bebês aquele dia?’”, disse Calley. “Pessoalmen­te, eu não matei nenhum vietnamita. Eu representa­va os Estados Unidos.”

Um dos soldados, Gary Roschevitz, sobre quem recaem alguns dos relatos mais brutais, ordenou que mulheres tirassem as roupas antes de matá-las com um lança-granadas. SALVAMENTO Sobrevoand­o a área depois das 9h, o piloto de helicópter­o Hugh Thompson observou que algumas das pessoas lançadas à vala estavam vivas. Também viu soldados caminhando tranquilam­ente e civis sendo executados.

Contou ter pensado no que ouviu sobre os assassinat­os nazistas e que não era possível que americanos estivessem fazendo o mesmo. “Deveríamos ser os mocinhos.”

Pousou o helicópter­o e cobrou satisfaçõe­s de Calley, que desdenhou de sua preocupaçã­o com os civis. Relatou via rádio o que ocorria.

Ao ver um grupo em perigo, Thompson pousou sua aeronave entre os vietnamita­s e os soldados. Com sua equipe de armas em punho, escoltou civis para uma área segura.

O morticínio terminou após as 11h, quando o capitão Medina anunciou uma pausa para o almoço.

Só três combatente­s vietnamita­s foram mortos, ainda no ataque inicial da artilharia. Três armas foram apreendida­s. Do lado americano, um soldado se feriu ao tentar limpar uma arma. Deu um tiro no pé. EDGAR SILVA

FOLHA ESTREIA SÉRIE SOBRE 1968

Reportagen­s relatarão, como se tivessem ocorrido nos dias de hoje, fatos que marcaram ano de profundas mudanças no mundo e no Brasil

Na única condenação pelo massacre, foi sentenciad­o em 1971 a prisão perpétua. Ganhou liberdade condiciona­l em 1974. Parte da população o viu como bode expiatório. Em 2009, desculpou-se publicamen­te pela primeira vez. Tem hoje 74 anos

Sua denúncia foi inicialmen­te considerad­a falsa. Deslocado para missões perigosas, teve seu helicópter­o derrubado e sofreu fraturas. Aposentou-se em 1983. Morreu em 2006

 ?? Ronald Haeberle - 16.mar.1968 ?? Civis sulvietnam­itas mortos por tropas dos EUA em My Lai; imagem só veio a público em 1969
Ronald Haeberle - 16.mar.1968 Civis sulvietnam­itas mortos por tropas dos EUA em My Lai; imagem só veio a público em 1969
 ??  ?? Jornal de Cleveland (Ohio) foi o 1º a publicar as imagens
Jornal de Cleveland (Ohio) foi o 1º a publicar as imagens
 ??  ?? Em 27.nov.69, Folha publicou reportagem após massacre vir à tona
Em 27.nov.69, Folha publicou reportagem após massacre vir à tona
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil