Folha de S.Paulo

Uma daquelas pessoas

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; TATI BERNARDI terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

PERCEBI QUE eu estava prestes a virar uma daquelas pessoas quando entrei de sócia em um clube. Mentira, foi quando fiquei feliz que abriria um bom hospital na avenida Sumaré. Mentira, foi quando contratei uma babá, a levei ao clube comigo e fiquei tentando, enquanto ela vigiava minha filha, pegar os resultados dos exames de sangue (apenas “rotina”) pelo aplicativo do hospital que abriu na Sumaré.

Percebi que havia virado uma daquelas pessoas quando o taxista desviou de um buraco e falei “ê, São Paulo!”. Frase que poderia ter sido claramente dita pela tia Cidinha. No mesmo dia, ao mesmo taxista, também proferi algo como “ah, mas quando tá abafado assim é chuva na certa”. Analise comigo a quantidade gritante de palavras combinadas nessa frase que poderiam ter sido ditas por uma daquelas pessoas: “ah, mas” “quando tá”, “abafado assim”, “é chuva” e, a mais terrível

Sei que virei uma daquelas pessoas porque “poder me demorar na farmácia” é a minha balada preferida. Quando a mocinha da farmácia encontra o antiácido digo “nossa, que ótimo” e sinto um deleite genuíno. A fila da farmácia é a nova fila para pagar a comanda da balada. Você louco para ir embora porque já gastou todo o seu tesão no lugar e a fila não anda. No meu caso, agora que virei uma daquelas pessoas, meu tesão está todo voltado para e sabonetes dermatológ­icos.

Sou uma daquelas pessoas porque estou há dias planejando dar fim ao meu marido e seu mais recente tique (certamente nervoso, pois ele está virando uma daquelas pessoas e certamente está apavorado com a transforma­ção, ou melhor: está apavorado NA CERTA). O tique consiste em um híbrido de grande soluço com miniarroto, e ele comete esse som sempre que eu lhe peço alguma coisa gostaria de sumir mas, porque virou uma daquelas pessoas, apenas atura tudo com esse pequeno grito de liberdade em forma de grande soluço com miniarroto). E eu odeio esse som com todas as minhas forças. E ele sabe e, não podendo me matar (tampouco contê-lo), me esquarteja espiritual­mente centenas de microvezes diárias, emanando o som macabro de seu retorno do recalcado esofágico. O refluxo é nossa única verdade.

Posso dar aula de como ser uma daquelas pessoas porque comprei, sem me dar conta que era esse o crachá definitivo do “sou pra cacete uma daqueles pessoas” um daqueles colares gigantes e coloridos expor as louças japonesas de vovó, assinei com meu sangue a certidão definitiva na qual diz “fulana virou uma daquelas pessoas”. Comecei a suar geladinho tipo aquelas mulheres com braços gordos que fazem tortas cheias de palmitos e milhos e azeitonas. Comecei a gostar de aliche e a falar “ai, pai do céu” quando bocejo. Não tem mais volta.

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